quarta-feira, 27 de abril de 2016

O corvo - Edgar Allan Poe


Voltei para Nova Iorque, onde mais uma vez perambulei em busca de nada ou talvez de tudo. Antes do amanhecer, eu já estava em outro ônibus rumo a Baltimore. Ao meu lado sentou-se o C.E.O de uma companhia... de Poesia. Ele estava elegantemente vestido com terno e gravata, mas ainda assim com o olhar de quem se despe diante da Poesia. Tão pesadas estavam as minhas pálpebras naquela noite que adormeci ouvindo palavras que cada vez mais perdiam o sentido. Ao despertar e me deparar com o assento vazio, imaginei se realmente eu havia conversado sobre poesia com um homem de terno e boné, que falava sobre segredos árabes, sobre as noites da África e sobre viagens em ônibus de assentos negros e choros de bebês. Se eu não acordasse com o cartão de visita dele em meu bolso, talvez eu pensasse que tudo não havia passado de um sonho, que nada daquilo tinha realmente acontecido. A vida seria isso? Apenas um cartão de visita? Nunca mais o vi.


Saí do terminal e acabei ao lado do estádio do Baltimore Ravens (os Corvos de Baltimore). Em poucos passos já estava perdido. Pensei, será que se eu perguntar alguém saberia me indicar o caminho para a casa de Edgar Allan Poe? A primeira pessoa que parei disparou:

— Sim, eu sei onde fica. Mas corra, porque a casa dele vai fechar…

A modesta casa de Poe naquela cidade havia se tornado um pequeno museu, que por falta de recursos estava prestes a encerrar suas atividades. O que seria feito do seu acervo? Estaria tudo fadado a ser emparedado para sempre? Corri. Fui me perdendo e perguntando pelo caminho as indicações para a casa de Poe.

— Quem? – alguns indagavam.

A aparente sorte inicial não se repetiu, mas foi falha minha. Eu estava perguntando como se Poe ainda estivesse vivo. A senhora, o senhor… sabe onde fica a casa de Edgar Allan Poe? Só percebi isso quando uma grande mulher negra gritou para as pessoas ao redor:

— Vocês conhecem algum Edgar Poe que mora por aqui?

Quando eu ia esclarecer sobre a mortuária condição de Poe, ela insistiu, como em um leilão de almas:

— Alguém conhece Edgar Poe? Alguém?

E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ela lamentou:

— Como isso é triste. Eu moro nessa vizinhança há anos e não conheço esse Mr. Poe… Ninguém conhece. Isso é mesmo muito triste. Quando ele morrer, quem irá ao seu funeral?

E eu percebi que ela realmente se preocupava com isso. Ela se lamentava sem sequer saber que o funeral já havia ocorrido há mais de 150 anos. Achei o luto daquela senhora tão autêntico que sequer esclareci a condição do vizinho famoso. Despedi-me já preparado a perguntar não mais sobre Poe, mas sobre um pequeno museu por ali, que também estava sendo velado, envolto em um funeral que estava prestes a acontecer. O museu fechado, como o tampo de um caixão. Nunca mais?

Assim continuei por aquela modesta vizinhança, de pessoas simples e dignas, de casas parecidas de tijolos à vista, sem qualquer ostentação. E carregando comigo a imaginária lembrança de Poe em seus últimos dias, perambulando pelas ruas daquela cidade, em delírio, muito mais perdido do que eu estava naquela manhã... O pobre escritor murmurando coisas sobre a sua alma. E foi tentando ouvir esses sussurros que, em uma esquina qualquer, entre as casas geminadas todas semelhantes, encontrei o que buscava...

Até então, das casas de escritores que havia conseguido visitar até ali, aquela era a mais humilde de todas. Edgar Allan Poe foi o primeiro escritor norte-americano a tentar viver exclusivamente como... escritor. Todos os demais tinham outras profissões paralelas. Senti uma tremenda empatia por aquela casa, pois ela era a edificação de um sonho possível: viver da escrita. Uma construção humilde, porém, sólida. Sim, ela estava ali, mesmo que com a porta fechada. A quem caberia abrir as suas portas e janelas?


Sentei-me na soleira, relembrando as memoráveis histórias do detetive Dupin, arrepiado por histórias como "O Gato Preto”, "O Barril de Amontillado” e relembrando “A Queda da Casa de Usher”. Que perfeita vizinhança, que manhã silenciosa velando uma casa fechada com seus segredos... Mas o ponto alto de minha peregrinação à casa de Poe em Baltimore foi o grasnar... de um corvo!

Ah! Que poética experiência! Que perfeita forma de cumprir o meu intento, de tentar vislumbrar a alma deste grande escritor. E tal foi a impressão daquele grasnar e das asas negras alçando voo, contrastando com o azul do céu, que sequer cogitei procurar pelo túmulo de Poe naquela mesma cidade, para encerrar a minha peregrinação. Para o fim, bastava relembrar alguns versos de seu poema mais famoso, “O corvo”:



“Sorriu-me o triste pensamento;

Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;

E mergulhando no veludo

Da poltrona que eu mesmo ali trouxera

Achar procuro a lúgubre quimera,

A alma, o sentido, o pávido segredo

Daquelas sílabas fatais,

Entender o que quis dizer a ave do medo

Grasnando a frase: ‘Nunca mais’.”



Aquele museu estava de portas fechadas, um ninho sem corvo? Reabriria um dia ou nunca mais? Levantei-me da soleira e sem sequer tentar girar a maçaneta da porta daquela casa velada, fui embora tentando encontrar no céu o corvo que já havia partido antes de mim. E a única coisa que encontrei no ar foi a dúvida, sem qualquer vestígio de resposta:

“Nunca mais?” 


Consegue encontrar o corvo?


P.S.: Alguns anos depois de minha visita a Baltimore, o museu foi, felizmente, reaberto!




Próximo capítulo: O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald

quarta-feira, 20 de abril de 2016

Moby Dick - Herman Melville

Tomei o trem de volta, depois um ônibus. Já era madrugada nos bancos do terminal de Boston, quando joguei o corpo ao sonho. Ao amanhecer, percorri as ancoradas ruas, com os pensamentos à deriva. Os passos me levaram ao mar. O mesmo mar que atraiu Herman Melville. A bordo do baleeiro Acushnet, Melville singrou os Mares do Sul, até desertar o navio nas ilhas Marquesas. Entre os ilhéus, encontrou inspiração para os seus dois primeiros romances: “Taipi: paraíso de canibais” e “Mares do Sul”. Conseguiu um relativo sucesso, que não se manteve durante toda a vida. Moby Dick foi um fracasso de vendas... Aos 72 anos, Herman Melville morria totalmente desconhecido, a ponto de seu nome ser registrado no obituário de um jornal como “Henry Melville”. De que adianta a glória póstuma, que registrou o nome de Melville como um dos maiores escritores da América, e a sua obra “Moby Dick” como um clássico mundial?


               Não importa quanto tempo havia se passado desde o dia em que Melville retornou, desembarcando em Boston de suas aventuras pelos mares do mundo, com a bagagem repleta de oceano... Ainda hoje, não há como ficar indiferente diante do mar. E foi por isso que eu dei as costas a ele e rumei de volta ao interior, para a cidade de Pittsfield, em busca de uma montanha…
               Parece não fazer muito sentido, mas quanto mais eu me afastava do mar naquele ônibus, mais próximo eu me sentia a ele. Assim cheguei a caminhar pelas ruas de Pittsfield, com o céu cuspindo gotículas de água em meu rosto. Em pouco tempo, meu corpo era fustigado pela chuva. Eu estava próximo a casa em que Herman Melville colocou o ponto final em “Moby Dick”. Estava prestes a ser alvejado pela ponta da Arrowhead, como é chamada a sua casa, que hoje se tornou um museu.  Por falar nisso, tive que pagar com o valor da comida de um dia inteiro pelo meu ingresso. Isso fez meu estômago reclamar.  Estava um tanto cansado de noites sem cama e um tanto incomodado com a chuva...
               Não havia muitos visitantes, contei todos nos dedos da mão. O pequeno grupo embarcou na casa como quem entra em um escaler, olhos fixos nas mãos do timoneiro, que apontava para as relíquias resgatadas de um tempo naufragado. E as citações dos livros de Melville ecoaram pelas paredes, como intermináveis ondas. Era como se uma tempestade se avizinhasse. Não, muito mais que isso. Que sensação era aquela, dentro do quarto de Melville?  Sobre Arrowhead, o escritor revelou em uma carta:
               “Eu tenho uma espécie de sentimento de mar aqui no campo ... O meu quarto parece uma cabine de navio; e à noite, quando eu acordo e ouço os ventos guinchando, eu quase imagino que há muita vela na casa, e que seria melhor ir ao telhado para guarnecer a chaminé”.
               O assoalho rangeu e através da janela o timoneiro apontou para o horizonte, anunciando: Moby Dick. Lá estava a inspiração (lenda?) para a Moby Dick de Herman Melville: o Monte Greylock, com sua insuspeita forma de baleia. Ou não? Uma densa neblina cobria os campos e no horizonte não havia nada além do invisível.
               Quando o tour pela casa acabou, os outros visitantes simplesmente embarcaram em seus carros e navegaram o asfalto, rumo às suas casas. Para onde eu iria? O guia também foi embora, porque aquele seria o último grupo do dia. Não chovia mais. Estava tudo calmo. Continuei andando pelos arredores da casa, como quem admira um navio ancorado no porto. Sentei-me na varanda da casa, apertando os olhos para tentar extrair do horizonte alguma silhueta de baleia. Nada. Levantei-me para explorar os arredores.
               No campo próximo encontrei uma representação de uma baleia parcialmente “mergulhada” na terra...  Dois homens em um barco. Enquanto um remava, o outro direcionava um arpão para o dorso do cetáceo. Aquela cena congelada me fez refletir. Não pensei em Ismael ou no capitão Ahab, nem em sua obsessiva busca por Moby Dick e o desejo de matá-la, em vingança por ela ter levado a sua perna. Estranhamente, apesar de estar diante de uma tragédia anunciada, orquestrada por um homem que tentava ultrapassar os limites do impossível, senti apenas uma estranha paz.  Como aquele pequeno homem poderia vencer uma grande baleia branca? Essa não seria a mesma luta de todos nós, meros mortais, diante do inevitável destino ou da face de Deus?


               Lembrei-me da primeira vez que vi uma baleia viva. Na verdade, mais de uma. Eu estava sobrevoando a costa da Austrália, quando o capitão apenas anunciou aos passageiros:  “Olhem para as baleias. Não parecem peixinhos?”.  Sim, aqueles gigantescos seres pareciam apenas pequenos peixes na vastidão do oceano...
               Então, essa lembrança soprada do outro lado do mundo me fez sorrir nos ondulados campos de Melville. Afinal, tudo é uma questão de ponto de vista. A minha busca nesta vida nada mais era do que um ínfimo plâncton entre os dentes de um peixinho no oceano. Tudo o que imaginava que poderia ser grandioso, escrever um livro, viajar o mundo, ir atrás da Moby Dick de Herman Melville, era apenas um minúsculo acontecimento, um ínfimo milésimo de segundo na face do tempo. Mesmo assim, como era bom poder enfrentar cada pequeno desafio (fome, chuva, cansaço) na busca em dar à minha vida... ao menos uma gota de oceano.







Próximo capítulo: O corvo – Edgar Allan Poe.



quarta-feira, 13 de abril de 2016

O apanhador no campo de centeio - J. D. Salinger

               Voltei para Boston, onde dormi nos desconfortáveis (para a posição horizontal) bancos da rodoviária. Apenas quem tem uma passagem (ou o passe da Greyhound) pode permanecer ali durante a madrugada. Alguns caras foram expulsos e as portas se fecharam. Quando tudo se tornou silêncio, fiquei pensando em como eu poderia chegar até a casa de Salinger. Eu havia conseguido informações sobre todos os locais que eu pretendia visitar: casas, túmulos, locais de alguma relevância na biografia dos escritores da minha lista. Tudo isso estava em meu guia, que eu mesmo havia feito com informações que colhi na Internet. Mas, de J. D. Salinger não havia pistas. Em um famoso site de busca de túmulos (Find a Grave), sobre o local de sepultamento do escritor está escrito: Desconhecido. Isso só me deixava ainda mais ansioso pela minha busca por Salinger.
               Ao amanhecer, peguei um ônibus para White River Junction, pequena localidade de cerca de dois mil habitantes, de onde tomaria um trem da AMTRAK para Windsor. Pelo que eu tinha constatado, o trem passava apenas uma vez por dia em direção a essa cidade, por isso fiquei surpreso ao ver a plataforma vazia próximo à hora de embarque. Um senhor apareceu, ainda mais surpreso ao me ver por ali.
               — Esperando pelo trem?
               Pensei que fosse uma pergunta boba, já que era óbvio que sim, pois eu estava na plataforma com a cara de ansiedade de quem espera.
               — Você já ligou pedindo para o trem parar?
               Como fiz cara de bobo, ele me levou a um telefone, onde pude fazer uma ligação gratuita para a AMTRAK. Peguei um número de reserva. Quem era bobo, afinal? Se não fosse por aquele homem, eu teria que esperar mais um dia pelo próximo trem! Isso não seria problema, porque fui informado de que eu poderia me hospedar no Hotel Coolidge, ali pertinho. O hotel era famoso por ser assombrado por um fantasma de um antigo hóspede que havia morrido ali. Depois de saber disso, fiquei ainda mais feliz por não ter perdido o trem... Ele ainda se despediu dizendo que as coisas por ali andavam um pouco paradas. Concordei. Não quis olhar para trás quando o trem partiu. Vai que a plataforma estivesse vazia?
               Ao desembarcar em Windsor, ainda não tinha encontrado a resposta de como eu poderia chegar à casa de Salinger. Será que eu poderia parar alguém e apenas perguntar:
               — Por favor, você poderia me dizer onde fica a casa de Salinger?
               Na verdade, Salinger morava em Cornish, cidade vizinha a Windsor, mas suas “aparições” nas últimas décadas antes de morrer se davam nesta última. Sem saber por onde começar, achei que um bom lugar para obter informações seria o Windsor Welcome Center. Fui atendido por uma simpática senhora de cabelos brancos, óculos e sorriso que parecia não dormir naquele rosto. Parecia um começo promissor. Conversamos sobre a cidade, sobre os heróis de Windsor, sobre o trem e as flores. Mas quando finalmente perguntei sobre Salinger, aquele sorriso esmaeceu, só um pouquinho, mas deu para perceber que aquele não era um assunto qualquer. Obviamente, ela não me indicou o caminho para a casa de Salinger, nem a localização do túmulo dele. Mas sepultamos a conversa entre sorrisos.
               Segui minha caminhada aleatória, até parar diante de uma casa de repouso que ostentava um curioso cardápio em uma placa em seu quintal. “Aloha Chicken Legs, Chinese Rice, Zucchini, Tapioca Pudding – Suggested Donation: Over 60 – $3,00, Under 60: $4,00”. Não pensei duas vezes. Foi o melhor almoço da minha viagem até ali (e não digo isso por só ter comido bananas, pizzas e hambúrgueres). Não foi apenas pelo sabor que aquele almoço foi especial, mas, principalmente, pela companhia. Logo de cara, Mr. Charles me chamou para compartilhar a sua mesa.



               E conversamos sobre coisas que se conversa com desconhecidos ao redor de uma mesa, enquanto se degusta deliciosas coxas de galinha. Conversei brevemente com outros “velhinhos”, todos muito vivos e alertas, pessoas despertas. Deixei cinco dólares, mas queria ter deixado mais. Mr. Charles perguntou para onde eu estava indo. Não falei nada sobre Salinger, apenas que estava meio perdido. Ele me ofereceu carona, mesmo eu não tendo lhe falado destino algum. O interessante era que aquele lugar parecia mais um centro de convivência da terceira idade do que propriamente um asilo, pois alguns podiam simplesmente sair a hora que quisessem. Nem todos tinham carro, aliás, só vi o do Mr. Charles estacionado por perto.
               Mr. Charles me levou para vários lugares interessantes em Windsor. Ele era dos meus, pois quando chegamos ao American Precision Museum, ele não quis pagar pela entrada. Não que eu não quisesse pagar, era mais por uma questão de ter pouco dinheiro. Mr. Charles gostava mesmo era das coisas gratuitas. Além do mais...
               — Pagar para ver coisas velhas? Eu vejo isso todo dia de graça, no espelho – e Mr. Charles sorriu.
               Depois, quando ele descobriu que eu queria ir até a casa de Salinger, ele me levou até a velha ponte que liga Windsor a Cornish e me disse:
               — Daqui pra frente é com você. É só seguir a estrada para lá. Não vou te levar até o fim porque chega uma hora em que cada um tem que descobrir o próprio caminho.
               Apertamos as mãos e ele partiu.
               Atravessei a ponte que mais parecia um túnel, por ser coberta. E na luz do fim do túnel, virei para o lado apontado por Mr. Charles e comecei a dar os meus primeiros passos em Cornish. Quando cheguei a um entroncamento, fiquei sem saber para onde ir. Foi quando vi um homem caminhando pela rodovia, boné na cabeça, barba, roupas simples.
               — Por favor, como faço para chegar na casa de Salinger? – tentei ser direto.
               — Há vários caminhos...
               — Qual é o mais rápido.
               — Bem, se está com pressa, você já chegou.
               Fiquei pensando no que ele queria dizer com aquilo. Como não consegui decifrar, tive que perguntar:
               — Como assim?
               — Você já está em Cornish. Eu vivo em Cornish. Aqui é a minha casa... Então...
               Na beira da estrada, comecei a ouvir a história da vida daquele homem. Como ele próprio havia reformado a casa e feito os móveis com as próprias mãos. De como ele havia sido aposentado por invalidez, por ter sérios problemas na coluna. De como continuava a trabalhar mesmo assim, informalmente, fazendo móveis com suas ferramentas manuais. E ouvi sobre a vida por ali, ri de piadas que não entendi e assim o papo foi fluindo. O que mais me chamou a atenção na conversa foi esta frase:
               — Meus gatos precisam de mim, por isso eu sigo em frente... Por isso caminho.
               E qual seriam as razões dos meus passos? Por que eu estava caminhando naquela estrada em Cornish, sem saber como chegar a algum lugar? E aí veio tudo de volta, da época quando eu li “O apanhador no campo de centeio” pela primeira vez, presente de uma ex-namorada de adolescência, que rabiscou na orelha do livro essas palavras: “Eu também te amo”. E pensei no que aquilo significava, por que o “também” e me lembrei de que aquela era uma época em que eu não sabia direito o que era amar. E será que alguém sabe? E de como as coisas pareciam difíceis, de como tudo parecia acabar em uma viagem sem sentido em uma grande cidade, e de como era revoltante ver palavrões rabiscados por todos os lugares xingando os incautos que os lessem por engano ou tédio. Sobretudo, me lembrei dessa parte do livro, que eu considero uma das mais belas que eu já li, quando Holden Caulfield diz o que ele queria fazer nessa vida:

“Fico imaginando uma porção de garotinhos brincando de alguma coisa num baita campo de centeio e tudo. Milhares de garotinhos, e ninguém por perto - quer dizer, ninguém grande - a não ser eu. E eu fico na beirada de um precipício maluco. Sabe o quê que eu tenho de fazer? Tenho que agarrar todo mundo que vai cair no abismo. Quer dizer, se um deles começar a correr sem olhar onde está indo, eu tenho que aparecer de algum canto e agarrar o garoto. Só isso que eu ia fazer o dia todo. Ia ser só o apanhador no campo de centeio e tudo. Sei que é maluquice, mas é a única coisa que eu queria fazer”.

               Pensei em Cecile, em como eu parecia um garotinho perdido ao chegar em Windsor, e em como ela me falou sobre a cidade de um jeito tão carinhoso para que eu compreendesse tudo e me sentisse um pouco em casa. Depois pensei em Mr. Charlie e em como ele pegou a minha mão e me levou por toda a cidade, me mostrando cada canto, dizendo “olhe”, abra os olhos. Veja o que está à sua volta! Mas ele sabia que não poderia evitar eventuais quedas pelo caminho. Por fim, ali estava Paul diante de mim, dizendo que eu estava correndo sem olhar para onde eu estava indo. Era isso... Eu estava correndo para chegar a algum lugar imaginário, porque, naquele instante, eu percebi que a casa de Salinger era apenas isso, um lugar que vive no imaginário das pessoas que não enxergam a própria casa e buscam as dos outros, como se isso fosse mudar as suas vidas. Sim, lá estava Paul, desempregado, o cara que fazia a própria cadeira para poder se sentar, andando mesmo com dor nas costas, porque precisava chegar à cidade vizinha apenas para comprar ração para os seus gatos, porque eles precisavam dele. Aquele cara, o povo de Cornish e de Windsor, todos eles eram os apanhadores no campo de centeio... Eu e todos os visitantes éramos apenas garotinhos correndo sem direção... E eu entendi o motivo que levou J. D. Salinger a viver naquele lugar, onde o trem passa apenas uma vez por dia (e às vezes sequer para), em que as pontes são cobertas e servem arroz chinês e pudim de tapioca em asilos para caras como eu, que só pensavam em encontrar Salinger, quando o importante era perceber que já estávamos lá, estávamos todos no campo de centeio...
               — Paul, obrigado.
               Voltei pela mesma ponte para Windsor, feliz por ter sacado tudo. Não precisava correr atrás de Salinger. Entrei em um restaurante para tomar um refrigerante. Sentei em um lugar e a moça no balcão me disse assim:
               — Mr. Salinger costumava se sentar aí...


              

             

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Natureza - Ralph Waldo Emerson


               Para encerrar minha viagem por Concord, parti da Old Manse, com o seu jardim plantado por Thoreau, a janela de Hawthorne e o legado dos Emerson, e segui em solitária procissão até o Cemitério de Sleepy Hollow. Não procurei pela sombra de Ralph Waldo Emerson em outra casa, a de número 18 da Cambridge Turnpike, pela qual passei apenas com um aceno. Preferi encontrá-lo sob a luz do dia, entre as árvores vivas de um cemitério.
               Obtive antes um mapa da necrópole, impresso e distribuído gratuitamente pela Casa Funerária Joseph Dee and Son, fundada em 1868, que prestou serviços fúnebres para as famílias Thoreau, Alcott, Hawthorne e Emerson. Uma casa funerária que passou de geração em geração, semeando os pais e os filhos de Concord.



               Logo no início da caminhada por entre as caladas pedras dos túmulos, encontrei a lápide de Eliab Hayden, cuja morte havia sido talhada no ano de 1856. Desconheço quem foi o dono daquele nome, mas o que me impressionou em seu túmulo foi a força da natureza. Um tronco abraçava a pedra tumular, partindo-a em dois (corpo e alma?). Eis ali o homem retornando a si, pelos braços da natureza, com as raízes daquela árvore retomando os fluídos do homem, para que ele renascesse em suas folhas, na fotossíntese da vida eterna! Pois assim escreveu Emerson:
               “O espírito, isto é, o Ser Supremo, não constrói a natureza ao nosso redor, mas a põe ali fora através de nós, como a vida da árvore põe para fora novos ramos e folhas...”




               Não havia ali a Cruz, nem a Estrela de Davi, nem a Lua Crescente, mas apenas o tronco de uma árvore em comunhão com a pedra do homem. A vida envolvendo a morte! Pois não foi isso o que Ralph Waldo Emerson proclamou em seu livro “Natureza”?
               “... o mais nobre sacerdócio da natureza é permanecer como aparição de Deus. É o órgão através do qual o espírito universal fala ao indivíduo, e se esforça para levar o indivíduo de volta para si”.
               Mas não... Assim deveria ser, mas o homem não permite essa volta, não crê, não aceita a natureza e tenta domá-la. A árvore que um dia abraçou o túmulo de Eliab havia sido cortada, restando apenas o testemunho de um tronco seco...




               Além de visitar os túmulos de Henry David Thoreau, Louisa May Alcott, Nathaniel Hawthorne e Ralph Waldo Emerson, visitei o túmulo de Daniel Chester French, o escultor da monumental estátua do presidente Abraham Lincoln, sentado em seu trono em Washington. Ainda em Sleep Hollow descansavam Elizabeth Peabody, educadora que fundou o primeiro Jardim de Infância nos Estados Unidos, e Ephram Wales Bull, que criou uma nova variedade de uva, a Concord, em cujo epitáfio se lia: “Ele semeou, outros colheram”. E não é isso o que todos fazemos? Semeamos para que os que ainda estão no jardim de infância possam se sentar no trono do amanhã? Ou não? 
               Ainda havia naquele cemitério o túmulo de F. B. Sanborn, que escreveu livros sobre os falecidos Thoreau, Emerson, Hawthorne e Bronson Alcott... Para depois, ele mesmo, ser enterrado entre os que ele tentou manter vivos pela força da palavra e da pena da História.
               Por isso escrevo? Escrevo sobre glórias alheias? Escrevo apenas sobre os grandes escritores que moldaram a América? Talvez, mas também escrevo por mim. Não pela glória de ser esculpido por um Daniel Chester French, nem para ser objeto de estudo pela pena de um Sanborn, mas apenas pela honra de sorver o ar que pairava sobre os famosos mortos de Sleepy Hollow, pois não havia e nem há glória maior do que esta: estar vivo!





               E para os que não acreditam nisso, encerro este capítulo com as palavras de Ralph Waldo Emerson, em sua obra-prima, Natureza:
               “ Tudo o que Adão tinha, tudo o que poderia César, você tem e pode. Adão chamou a sua casa de céu e terra; Cesar chamou sua casa, Roma; você talvez chame a sua de sapataria, de cem hectares de terra arada; ou quarto de estudo. No entanto, linha por linha e ponto por ponto, o seu domínio é tão grande quanto o deles, ainda que sem seus refinados nomes. Construa, portanto, o seu próprio mundo”.
               Parti de Concord, abandonando o mundo dos transcendentalistas, para construir o meu próprio mundo, passo a passo... mas ainda sem nome.


Próximo capítulo: O Apanhador no Campo de Centeio – J. D. Salinger


PS: A postagem de hoje é dedicada a Ademar Schiavone, que soube glorificar a vida, despedindo-se ontem para voltar à Natureza.