Muito obrigado a todos os que acompanharam a peregrinação das folhas caídas!
Até a próxima peregrinação!
quinta-feira, 22 de setembro de 2016
quarta-feira, 31 de agosto de 2016
Folhas de Relva - Walt Whitman
Ainda em Nova Iorque, quando os ponteiros se aproximavam da meia-noite, tive que aceitar o dia da partida. O que eu poderia fazer
se ainda tinha tantos escritores que desejava visitar? Queria correr como um
louco para vislumbrar o apartamento comunitário
em que Burroughs e Allen Ginsberg dividiram na 419 West 115th St., ou o
apartamento que Truman Capote comprou com os direitos autorais que recebeu pelo
seu livro “A sangue frio”, na 860-870 U. N. Plaza. Quem sabe um dos vários
endereços de E. E. Cummings, ou o de John Dos Passos na 11 Bank Street ou do
outro John, Steinbeck, na 38 Gramercy Park N. (após ter abandonado a
universidade em busca de seu sonho de se tornar um escritor). Quem sabe espiar
o lugar onde Arthur Miller viveu com Marilyn Monroe na 444 East 57th St.
Poderia ir para o famoso Chelsea Hotel na 222 West 23rd onde tantos escritores
se hospedaram (bem como astros como Bob Dylan, Janis Joplin, Leonard Cohen,
Jimi Hendrix, Sid Vicious e Nancy). Mas, se no início da minha viagem eu já não
tinha muito dinheiro, agora, no fim, muito menos teria para me hospedar em um
lugar assim. Ah, e também queria revisitar Ernest Hemingway, Edgar Allan Poe em
um dos vários endereços (em todos eles, alega-se que ele escreveu “O corvo”), Mark Twain... Por ora, eu havia passado diante do
apartamento de J. D. Salinger na 300 East 57th Street, onde morou antes de se refugiar na pequenina Cornish. Queria seguir os passos de Holden
Caulfied... Tantos fizeram de Nova Iorque o seu chão...
Eu já estava diante de uma construção de tijolos vermelhos na 307
West 11th, onde Kerouac revisou “On the Road” e escreveu parte de “Anjos da
Desolação” no apartamento de sua namorada Helen Weaver. Naquele instante, eu já
estava um tanto quanto cansado... E angustiado. Afinal, como eu poderia visitar
tantos lugares em apenas uma madrugada? Pior, já estava em meu último dia na
América e eu ainda não havia visitado a cidade de Camden, ainda não havia
visitado o único museu que eu poderia frequentar sem problema, pois era um
museu gratuito: a casa de Walt Whitman. Esta deveria ser a minha primeira
visita na América, de acordo com o meu plano original (que mudou várias vezes na estrada), o local mais próximo de onde eu
havia desembarcado no país. Mas, teria eu ainda tempo de encontrar Walt Whitman?
Ali, desamparado pelos minutos que escoavam pelo ralo do
peito, encontrei, jogado na calçada, um par de botas. Aquela visão me acalmou e
fez brotar no meu rosto, como folhas de relva no orvalho da manhã, um sorriso. Sim,
a simples e miserável imagem de um surrado par de botas abandonado teve esse
poder sobre mim.
Ali estava Walt Whitman...
Pois para quem leu Folhas de Relva, a maior peça poética da
América, pode bem entender o que digo. Na “Canção de mim mesmo”, Whitman começa
declarando:
“Eu celebro a mim mesmo,
E o que eu assumo você vai
assumir,
Pois cada átomo que pertence
a mim pertence a você.
Vadio e convido minha alma,
Me deito e vadio à
vontade... observando uma lâmina de grama no verão”
A partir daí, com os versos sem qualquer métrica, como as folhas
de grama assim o são, sem medida, irregulares e livres, nos vemos absorvidos
pelo chão da América, de todos os cantos, pois ali mesmo em Nova Iorque Walt Whitman
caminhou e deixou suas pegadas. E suas sementes se estenderam pelo gramado do
Central Park, pelas fissuras de cada beco ou larga avenida, estendendo-se infinitamente
até o oeste, o norte, o sul... Sem sequer me dar conta, a cada cidade americana
que visitava, eu tinha visitado também a face de Whitman, pois nenhum outro foi
capaz de escrever a alma da América como ele logrou realizar durante seus
longos anos, muitos dos quais dedicando-se a cultivar a sua maior obra. E
assim, desde a primeira edição em 1855 da misteriosa e lendária “Folhas de
Relva”, sem ter revelado o nome do autor na capa, apenas com a enigmática
figura de si mesmo, homem comum, prostrado diante dos ventos da mudança – que ele
mesmo soprou, vieram as outras edições e suas folhas cresceram: 1856, 1860,
1867 – quando primeiro se pôde ouvir os versos: “O Captain! My Captain” –
seguindo pelas edições de 1876, 1881, 1891 – que dizem ter sido a última... Mas
não. Pois as folhas de relva continuam a crescer, não apenas nas vastas
pradarias da América do Norte, mas também em todos os continentes nos quais as folhas vivas persistem.
Pois, nos versos finais de “Canção de mim mesmo”, Walt nos
revela:
“Me entrego à terra para
crescer da relva que amo,
Se me quiser de novo me procure
sob a sola de suas botas
Vai ser difícil você saber
quem sou ou o que estou querendo dizer,
Mas mesmo assim vou dar
saúde,
Vou filtrar e dar fibra a
seu sangue.
Não me cruzando na primeira
não desista,
Não me vendo num lugar
procure em outro
Em algum lugar eu paro e
espero você”.
Em breve, na primavera, o lançamento do livro virtual de poesia "A peregrinação das folhas caídas".
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
O Profeta - Khalil Gibran
Em Nova Iorque, caminhei até a 51 West 10th Street, em
busca do profeta. Semanas antes, quando andava a esmo pelas ruas de Boston, onde a família de
Khalil Gibran viveu seus primeiros anos na América após imigrarem do Líbano, eu já o
procurava. Encontrei naquela cidade apenas o silêncio do bronze, em uma placa
em sua memória. Mas foi em Nova Iorque que o barco buscou o profeta em seu retorno para a sua terra natal e era por isso que eu caminhava por aquela
cidade, com a urgência de quem quer se despedir de alguém importante.
Em 1931, Gibran partiu e, um ano depois, seu
corpo descansou para sempre em um monastério no Líbano, onde suas palavras
ainda proclamam: “Estou vivo como você, e eu estou de pé ao seu lado. Feche
seus olhos e olhe ao redor, você me verá à sua frente”.
Foi assim que encontrei o lar do profeta em Nova Iorque, na
51 West 10th Street. Diante de mim havia um grande prédio, de janelas
simétricas e sem qualquer característica de ser, de fato, a casa de um profeta.
Mesmo antes, quando o Studio Building ainda estava de pé, este sim, o prédio em
que Khalil Gibran viveu até a morte e no qual, provavelmente, escreveu “O profeta”, eu não conseguiria enxergar qualquer traço de santuário. Sim, as paredes que
abraçaram Khalil Gibran há muito não mais existiam. Mas, ainda assim, naquele
lugar, viveu um profeta. E eu só consegui enxergar isso seguindo as suas
palavras: “Feche seus olhos e olhe ao redor”.
![]() |
Endereço do profeta |
E não é esta a magia de toda palavra? Naquela noite, silenciei todos os ruídos do mundo, pois queria ouvir somente as palavras de Gibran, lidas à beira-mar, na época em que eu morava em Caraguatatuba, com livros deste autor emprestados da pequena biblioteca da cidade. Li todos os volumes disponíveis de Khalil Gibran e a cada vez que eu os devolvia e retornava pela orla, eu parava por alguns instantes, para também observar o mar e ver se algum barco viria me buscar. Para onde? Eu não sei... O destino só se revela quando a viagem chega ao fim.
Aquela noite, na cidade onde o profeta partiu, foi a última
noite de minha peregrinação...
“E o que é cessar de
respirar, senão livrar a respiração de suas incansáveis marés, que se elevam e
expandem e buscam a Deus sem obstáculos? Só cantareis de verdade quando
beberdes do rio do silêncio. E quando chegardes ao topo da montanha, só então
começareis a subir. E quando a terra pedir os vossos membros, só então
dançareis”.
(Gibran Khalil Gibran, O
profeta)
![]() |
Manuscrito de Khalil Gibran em exposição no Memorial da América Latina (2013) |
Próximo capítulo: Folhas de Relva - Walt Whitman (31/08/2016)
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
Um bonde chamado desejo - Tennessee Williams
Retornei a Nova
Iorque com as luzes da ribalta começando a brilhar. Cruzando as
largas avenidas, indaguei-me se haveria palco maior no mundo do que
aquele sobre o qual caminhava. O meu curto ato na América estava
chegando ao fim. E ainda havia tanto atos que eu nunca veria…
Em minha angústia,
olhei para a lista de endereços de grandes autores que viveram
naquela cidade. O primeiro nome da lista era de um escritor que passou os
seus últimos dias na Big Apple: Tennessee Williams, dramaturgo
premiado com o Pulitzer. O endereço? O Hotel Elysée.
Meu desejo, na
verdade, não era em absoluto chegar àquele hotel. Eu queria me
dirigir a St. Peter Street, 632 em New Orleans, onde Williams começou
a escrever “Um bonde chamado desejo”. Mas eu não teria tempo,
nem dinheiro, para percorrer os vastos territórios do sul. Então,
eu interpretava uma mágica presença, assim como fiz durante toda a
minha peregrinação literária. Afinal, ter visitado o local de
nascimento de Hemingway teria me dado os céus da Espanha ou o mar?
Ler a imóvel lápide de Jack Kerouac teria me dado o constante
movimento deste autor por todas as estradas da América? O que
haveria de Tennesse Williams no Hotel Elysée, onde suas palavras
encontraram o fim?
Eu encontraria
muito mais desses autores nas obras enfileiradas na biblioteca da
minha própria cidade do que eu jamais poderia fazer na América. Só
que eu queria tentar encontrar mais sob as estrelas das bandeiras
americanas, que tremulavam debaixo das reais estrelas ofuscadas pelo
artificial brilho da metrópole. Eu buscava essa ilusão de que, ao
caminhar pelas ruas de Nova Iorque, eu estaria lendo capítulos que
nunca foram escritos por todos estes cuja morte encerrou a
possibilidade de novos atos de criação… Apenas, ilusão?
Até o nome
“Tennessee” é “falso”, pois seu verdadeiro nome foi Thomas
Lanier Williams III, filho de uma família instável, mergulhado em
uma realidade que o levou a comentar: “Descobri na escrita uma fuga
de um mundo real no qual me sentia profundamente desconfortável”.
Fuga. Era isso o que eu tentava empreender durante a minha longa
jornada. Uma fuga dessa tal realidade para me entregar apenas à boa
ficção. Uma mentira? Assim como o nome de Thomas, que escolheu
carregar o nome Tennessee por ter vivido dois anos felizes nesse
estado americano? Por que não escolher nossos próprios enredos até
o ato final, que não pode ser escolhido?
Tennessee Williams
morreu engasgado com a tampa de plástico de um remédio. Quem
imaginaria um fim assim? Ao chegar diante do hotel em que ele passou
a sua última noite, eu sabia que não poderia dormir ali. E nem
desejava isso. Queria passar a noite acordado, desperto, para não
perder nenhum instante, assim como quem não consegue parar de ler
até chegar ao fim de uma boa história. Tentei imaginar enredos por
trás das janelas acesas daquele hotel. Imaginei o fim de Tennessee,
que, mesmo tentando fugir da realidade, não conseguiu deixar que ela
o seguisse até em sua ficção, inspirando-se em sua irmã, que
seria lobotomizada, e tantas pessoas reais com quem viveu suas
mentiras não escritas.
Na história de
Tennessee há realmente um bonde chamado Desejo…
Se embarcássemos
nele, acredito que cada um de nós acabaria em um destino diferente.
Qual seria o seu?
Próximo capítulo: O profeta - Khalil Gibran (17/08/2016)
Próximo capítulo: O profeta - Khalil Gibran (17/08/2016)
quarta-feira, 20 de julho de 2016
Harmonium - Wallace Stevens
Pela
América, visitei autores com biografias incríveis, aventureiros, seres que
moveram milhares de pessoas a novas formas de pensar, a revoluções... Na
própria Hartford, busquei o grande Mark Twain e Harriet Beecher Stowe, a mulher
que com o seu livro “começou” a Guerra Civil Americana. Mas, antes de partir
dessa cidade, decidi ainda visitar a casa de Wallace Stevens, justamente pela
sua biografia: 1879, nasce em Reading; 1901, ingressa na Faculdade de Direito;
1909, casa-se com Elsie Viola, com quem tem uma filha, Holly Stevens; 1916,
entra para a Companhia de Seguros Hartford, onde trabalha até morrer, em 1955.
Não parece uma vida muito inspiradora, certo? Mas, então, como ele foi capaz de
escrever obras poéticas tão fortes, chegando a receber o Prêmio Pulitzer e o
National Book Award? Tentei descobrir isso, refazendo o mesmo caminho que
Wallace Stevens repetiu por anos a fio, da sua casa até o trabalho na
Seguradora.
Propositadamente,
caminhei sem prestar atenção à minha volta, até chegar à casa de Wallace. Por
que fiz isso? Para não “cansar” a minha vista, pois isso poderia interferir em meu
olhar durante a caminhada poética. Pois não é isso o que nos impede de apreciar
o que temos à nossa volta? Quando já estamos tão cansados de ver as mesmas
coisas, que passamos a não enxergá-las mais? Entramos no modo automático do
cotidiano. Mas não para quem consegue manter o olhar de poeta...
Ao
chegar à casa de Wallace, de tábuas brancas, contornos simples, telhado
inclinado preparado para a neve, senti a tentação de tocar a campainha,
explorar o seu interior. Mas eu não poderia fazer isso. Não era pelo fato da
casa estar fechada ao público, por ter se tornado o lar de outra pessoa que não
Wallace. Não. O que me impediu foi a lembrança destes versos:
O leitor tornou-se o livro; e a noite de verão”
Imaginei Stevens em um dos cômodos da casa, mergulhado no
silêncio e na calma do seu próprio mundo. Eu não poderia perturbar esse
momento. Eu lia a casa, em silêncio, como deveria ser. Após absorver toda a
tranquilidade daquele lar, estava já preparado para a minha caminhada. Ao longo
da rota, havia trechos do intrigante poema “Treze formas de olhar um melro”,
gravados em blocos de granito. Sempre preferi a leitura desse poema ao
contrário, da última estrofe para a primeira. Assim, iniciei com os versos da
13.ª estrofe (aqui já traduzidos por João Moura Junior):
“A tarde toda era um fim de tarde.
Nevava
E ia nevar.
O melro estava assentado
Nos galhos do cedro”.
A cada
passo, tentava absorver a essência do caminho. Vi o carteiro trazendo o mundo
para uma casa sem muros, um esquilo atravessando a rua, folhas multicores, a
relva e a calma. Não havia nada de extraordinário pelo caminho, mas, de
qualquer forma, sentia-me como um aventureiro que desbravava um novo mundo!
Pode parecer exagero, mas não. E não era pelo fato daquele ser o caminho que
Stevens percorria para o seu trabalho. Era pelo simples fato de que eu estava
totalmente imerso no caminho, como se cada folha e pedra me pertencesse, não da
forma como costumamos pensar em “propriedade”, mas um pertencimento atávico,
que me trouxe a lembrança do dia em que me perdi na minha própria rua onde eu
morava, criança que era, seguindo uma folha carregada pela chuva recém-caída...
Eis a poesia, voltar a ter olhos de criança...
E assim
cheguei, ao fim da jornada, com estes versos, a primeira estrofe:
A única coisa a mover-se
Era o olho do melro”
Sim, para
ser poeta, não é preciso ser grande, escalar as maiores montanhas em busca de
inspiração. Creio que basta focar o olhar no próprio quintal da alma, e encontrar o
mundo que lá existe...
quarta-feira, 6 de julho de 2016
A Cabana do Pai Tomás - Harriet Beecher Stowe
Apenas
alguns passos da casa de Twain e eu já estava na casa de Harriet Beecher Stowe,
a escritora a quem o presidente Abraham Lincoln disse: “Então você é a mulher
que escreveu o livro que começou esta grande guerra”. Ele se referia à Guerra
Civil Americana (1861 a 1865), que teve como origem a questão da escravidão,
com os estados do sul defendendo-a para suprir mão de obra para suas extensas
plantações e os estados do Norte defendendo a sua abolição.
Mas será
que um livro tem realmente esse poder sobre a guerra e a paz? Resolvi ler “A
Cabana do Pai Tomás” para descobrir. A história é de fato comovente, mostrando
a crueldade da escravidão, já começando
com o difícil diálogo sobre a venda de dois escravos: Tomás e um garoto, filho
de uma escrava. Enquanto o primeiro se entrega ao destino proposto pelo seu
dono, a escrava foge com o filho... É impossível não desejar de todo coração
que estes personagens consigam a liberdade...
De todas
as frases que me marcaram nesta obra, talvez a mais forte seja:
“Não se
pode transformar um homem numa coisa”.
Enquanto
caminhava pelo tranquilo quintal da bela casa de Stowe, imaginei o conforto em
que ela viveu. O conforto pode muitas vezes nos turvar a visão. Acomodar a
alma... Mas, então, por que Stowe não se acomodou? Por que, pelo contrário,
incomodou a muitos? Sim, incomodou, pois confrontou a todos com a horrenda
realidade da escravidão, incitando com suas palavras uma necessária mudança,
que de fato aconteceu. Aconteceu?
Enquanto
a guerra era travada, Lincoln assinou o ato de emancipação, abolindo a
escravidão, em 1863, onze anos depois da primeira edição de “A cabana de Pai
Tomás”, originalmente publicada em capítulos em um jornal abolicionista. Mas
por que mesmo depois de um século, sob o memorial erigido para homenagear aquele mesmo
presidente Lincoln, Martin Luther King ainda “sonhava” que um dia seus filhos
viveriam em uma nação onde não seriam julgados pela cor da pele, mas pelo
caráter?
E hoje?
Este sonho já se tornou realidade?
Palavras,
como as do livro de Stowe ou as do discurso de Luther King, podem sim nos inspirar
e mudar o mundo... Mas de nada adiantam se nada sentirmos diante delas... Pois,
ao contrário do que Stowe escreveu em seu livro, é possível sim nos tornarmos
coisas. Pois apenas as coisas não se incomodam com nada e nada sentem diante
das injustiças deste mundo...
Sejamos,
pois, humanos...
Próximo capítulo, 20/07: Ficção Suprema - Wallace Stevens.
quarta-feira, 22 de junho de 2016
As aventuras de Huckleberry Finn - Mark Twain
Há quase
dez anos eu havia passado por aquele mesmo lugar. O meu amigo Emerson, que
largou tudo para se aventurar em outro país, havia me deixado ali, para que eu
fizesse a minha longa viagem de volta para casa. Muitas coisas se passaram pela
minha cabeça. Em Hartford, pensei no que Hemingway disse: “Toda moderna
literatura americana procede de um livro de Mark Twain, Huckleberry Finn”. Da
primeira vez em que pisei em Connecticut, me lembro claramente de minha vontade
de visitar Twain, enquanto eu passava os dias na casa do meu amigo. Acabei me
deixando ficar no cotidiano de amizade, abandonando explorações literárias
naquela ocasião. Enfim, dez anos depois, meu amigo já não morava mais por ali,
então, restava visitar, finalmente, a casa de Twain.
“As aventuras de Huckleberry Finn” é a continuação de “As aventuras de Tom Sawyer”.
Tom e Huck eram amigos e cada qual é protagonista de um dos livros, com o outro
como coadjuvante. Mas a questão é que o que percebo nesses livros (ou o que
quero perceber) é a essência da amizade, a maior aventura de todas. Huck Finn
acaba simulando a própria morte para fugir de casa e se aventurar pelo rio
Mississípi na companhia de Jim, um escravo fugido. Não gosto de contar muito
sobre uma obra, porque cada um deve seguir as aventuras de um livro por conta
própria, com todas as interpretações certas ou erradas sobre o enredo. Se é que
há tal coisa de certo ou errado.
Quando éramos
crianças, eu e meu amigo Felipe ensaiamos fugas. Queríamos saltar no vagão de um
trem que passava perto de casa, para ir pra sei lá onde. Felipe era um cara que
não conhecia limites quando se tratava de “defender” ou apoiar um amigo.
Passava por cima de qualquer coisa. Cometemos alguns erros, claro. Mas eram
erros infantis, que, graças à Deus, nunca levaram a maiores consequências. Mas
em algumas situações, sei que colocamos nossas vidas em risco. E depois dávamos
risada por termos escapado...
Enquanto
caminhava por Hartford, ouvindo o eco de outono quebrando debaixo dos meus pés,
eu só podia pensar em quanto éramos felizes por podermos contar um com o outro.
Amizade verdadeira é algo que levamos com a gente até o fim, mesmo quando o fim
do outro chega antes do nosso. A cada esquina daquela cidade desconhecida, eu
me lembrava dos meus amigos. Das caronas irresponsáveis, das brincadeiras
estúpidas, das mentiras que se tornavam verdades... E o que tudo isso tinha a
ver com Mark Twain? Eu só estava mesmo me baseando em uma frase dele:
“A
função correta de um amigo consiste em apoiar-te quando erras. Infelizmente, a
maior parte das pessoas só está do teu lado enquanto permaneces no caminho
certo”.
Quando
cheguei à casa de Samuel Clemens, o verdadeiro nome de Mark Twain, fiquei
admirado com o lugar. De fato, foi difícil para os Clemens se mudarem daquele
lar, quando começaram a enfrentar dificuldades econômicas por conta de maus “investimentos”.
Naquele lugar, as melhores obras de Mark Twain nasceram, incluindo “As
aventuras de Huckleberry Finn”. E por que esse livro é tão especial para mim?
Porque ao ler suas páginas reencontro o cara que não media o certo ou o errado quando olhava pra um amigo...
O livro
chegou a ser banido pela Biblioteca de Concord, por ser um mau exemplo para os
jovens. Pois bem, o que seria um mau exemplo? Foram os erros que cometi com os
meus amigos que me ensinaram muito mais do que os acertos... Por exemplo, eu não tinha dinheiro (se quisesse continuar comendo até o fim da peregrinação) para pagar pelo ingresso para entrar na casa-museu. Percebi que seria possível
entrar mesmo assim, pois um tipo de filmagem estava sendo preparada e um pequeno caos
estava estabelecido na entrada. Poderia ter feito isso em nome dos velhos
erros? Sim. Mas não o fiz. Errar uma vez por rebeldia, ingenuidade ou seja lá o
que for é uma coisa. Repetir erros sistematicamente, tornando-os
aceitáveis para nós mesmos, isso já é outra coisa. Muitos consideram a obra como
racista, pelo jeito em que Jim é descrito, como um negro ingênuo e, por vezes,
inferior. Para muitos naquela época, a horrenda escravidão era aceitável socialmente e legalmente correta. Mas só porque a “sociedade” afirma que algo é aceitável, devemos aceitar? Se as leis dizem que algo é correto está tudo bem?
A beleza
de Huckleberry Finn consiste em mostrar que dentro de uma balsa descendo um rio, no qual os olhares da sociedade não navegam, a verdadeira amizade pode florescer,
livre de qualquer julgamento do que pode vir a ser certo ou errado.
Sei que
o meu amigo Felipe nunca iria querer visitar a casa de Twain, nem o meu amigo
Emerson, que apesar de ter morado ali perto, nunca visitou a tal casa do escritor. Cada um tinha um sonho, uma meta,
um caminho correto a ser seguido. Era eu quem queria me tornar um escritor, por
isso estava ali. Quando somos crianças, parece que nossos caminhos são iguais. Caminhamos juntos até que, em certo ponto, nos separamos, cada um em
busca do próprio objetivo, da coisa certa a se fazer pelo caminho. Mas,
mesmo quando nos lançamos ao rio da infância e nossas balsas se separam no
delta da vida adulta, no fim, sempre acabamos no mesmo mar. De certa forma, ainda
acredito nesse reencontro... É essa a aventura que está por vir que eu e meu
amigo Felipe, que foi antes de mim, iremos seguir, a fuga em busca da verdadeira liberdade, em que certo ou
errado são apenas palavras sem qualquer julgamento...
Próximo capítulo no dia 06/07: A Cabana do Pai Tomás - Harriet Beecher Stowe.
quarta-feira, 8 de junho de 2016
Por quem os sinos dobram - Ernest Hemingway
Após
várias horas de viagem, cruzando paisagens desérticas e localidades encravadas
no vazio, eu já tinha perdido a noção de que estado estávamos, quando o ônibus
parou em um posto de conveniência no meio do nada. Desci do ônibus para ir ao
banheiro. Quando saí de lá, só encontrei o atendente atrás do balcão e ninguém
mais. O ônibus havia partido.
— Acho
que você perdeu o ônibus – ele disse, um tanto assustado.
Tentei
ser prático, tentando não me importar com o fato de que a minha mochila, com
todas as minhas coisas, tinha ido embora sem mim:
— A que
horas vai passar o próximo?
— Daqui
a 24 horas...
Saí tão
desolado que sequer perguntei onde estávamos. Quando olho para cima, vejo uma
placa com a resposta:
“YOU ARE
NOWHERE”.
Um trocadilho
interessante, que poderia significar: “você está aqui agora” ou “você está em
lugar nenhum”. Então, qual das respostas eu escolheria?
Pouco
tempo depois, o atendente alegremente me deu a notícia:
— Eu
liguei para a companhia de ônibus. Eles vão tentar entrar em contato com o
motorista. Se conseguirem, talvez ele volte.
Esperança.
Quantas pessoas simpáticas eu estava encontrando em meu caminho? Que sentimento
de fraternidade e...
O ônibus
voltou. O motorista abriu a porta. Antes que eu pudesse me desculpar, ele me
deu uma tremenda bronca. Enquanto eu entrava, ele anunciava pelo microfone:
— Agradeçam
ao passageiro que está subindo neste instante, porque, graças a ele, não
teremos mais paradas, nem para um cigarro. Quem descer do ônibus nos próximos
pontos será deixado para trás. E dessa vez eu não vou voltar...
Ouvi o
início de uma vaia. E logo vieram os “agradecimentos”:
— Se eu
fosse você, seu f..., não dormiria – disse um.
— Melhor
você vigiar suas costas, China – disse outro.
Em outra
fileira, uma mulher com os dentes cerrados me mostrava o dedo do meio. Outro
passou me dando um esbarrão.
Depois
de sentir toda a simpatia de uma família na Califórnia, que não me enxergou
como um estranho, mas como alguém com quem partilhariam fraternalmente uma
refeição, senti o outro lado das pessoas: a antipatia e o olhar de distanciamento.
O clima de hostilidade me fez refletir sobre a condição humana. Cada um
daqueles que me viam como “inimigo” dentro daquele ônibus só queria fumar um
cigarro a cada parada que eu detonei com o meu erro. Pedir desculpas, como eu
fiz mais de uma vez, não lhes daria a nicotina necessária em seus pulmões para
apaziguar toda a ansiedade de uma desconfortável e longa viagem, em que pessoas
são obrigadas a conviver, em um pequeno espaço, com outras para quem não dão a
mínima, enquanto cruzam a vastidão de paisagens que tampouco se importam com a
solidão que cada um carrega dentro daquele ônibus. Se ao menos tivéssemos a
companhia um do outro...
Mesmo
com as ameças, acabei adormecendo e acordando em algum lugar. Não me lembro
onde, mas só sei que todos estavam cansados demais para continuarem a me
condenar. Algum tempo depois, eu chegava a Chicago, de onde rapidamente tomei
um trem suburbano para a vila de Oak Park, pacata localidade onde nasceu um dos
maiores escritores da América: Ernest Hemingway.
Enquanto
caminhava por Oak Park, relembrei a primeira vez em que li Hemingway, em um empoeirado
volume de “O velho e o mar”, emprestado da pequena biblioteca de Caraguatatuba,
cidade litorânea. Eu estava tomando conta da casa da minha mãe e do meu
padrasto, que estavam no exterior. Naquela época eu ainda não tinha publicado
nenhum livro. Tentava escrever, mas não conseguia. Então, eu apenas lia, o mais
próximo que eu podia chegar da Literatura, que eu havia escolhido como
propósito de vida, sem saber como um dia eu poderia tornar essa escolha uma
realidade. Devorei o livro. Quando o fui devolver à biblioteca, com as páginas
sendo folheadas pelo vento na cestinha da bicicleta enquanto eu pedalava pela
orla, fiquei imaginando o que tudo aquilo que estava na minha cesta significava.
Quem eu era naquele momento? Eu era o velho Santiago, pescador desacreditado por
quase todos, mas que se lança ao mar mesmo assim? Era o jovem Manolin, que
acreditava ainda no velho pescador? Era o peixe devorado? O tubarão?
Foi um
livro que me marcou muito e por isso eu queria compreender tudo o que ele
significava. Até tentei pesquisar sobre a obra, até me deparar com a resposta
do próprio Hemingway:
“Não há
qualquer simbolismo. O mar é o mar. O velho é um velho. O garoto é um garoto e
o peixe é um peixe. O tubarão é como todos os tubarões, nem melhor nem pior.
Todo o simbolismo que as pessoas enxergam é merda. O que vai além é o que você
vê além...”
Muitos
anos depois, ao ler “Por quem os sinos dobram”, eu já não me fiava em símbolos,
nem buscava significados ocultos em suas obras. E isso nem seria necessário.
Tudo é tão real em Hemingway que nos sentimos mais dentro da “realidade” do
livro do que fora dele. E isso não é nem um pouco alentador em certas linhas...
E foi
pensando em minha relação com esse escritor, que finalmente me deparei com uma
placa cravada no chão, que atestava que aquele era o “local de nascimento de
Ernest Hemingway, no dia 21 de julho de 1899”. Era muito cedo, e a casa que
testemunhou as primeiras lágrimas de Hemingway ainda dormia. Sentei-me na
varanda úmida, com as folhas molhadas de frio no quintal. Então, brinquei de
folhear aquelas folhas, como se cada uma delas pudesse me contar uma história.
Em que ponto da vida de Hemingway, que havia nascido ali, voltou-se para a
consciência da morte? Será que eu estava indo muito rápido na biografia deste
escritor?
Em “Por
quem os sinos dobram” acompanhamos a missão de Robert Jordan, encarregado de
explodir uma ponte durante a Guerra Civil Espanhola. Para isso, ele precisa
contar com a ajuda de várias pessoas, com quem convive e absorve novas formas
de enxergar o mundo. Hemingway presenciou essa guerra na vida real, bem como a
guerra entre gregos e turcos, caçou barcos alemães na costa de Cuba,
testemunhou o desembarque na Normandia no Dia D e chegou a matar um soldado
nazista... Por fim, se matou aos 61 anos...
De leste
a oeste, em vários cantos da América, vi monumentos e cruzes em memória a alguém que morreu em alguma guerra, seja a civil americana ou em terras distantes,
como em Bagdá... Em uma parada durante a longa viagem a Chicago, na pequena
localidade de Ogalalla, havia uma placa em memória a um sargento que morreu no
dia 04 de novembro de 2005, no Iraque... Ao lado, a silhueta de um caubói de
cabeça baixa. Provavelmente, em Bagdá talvez existam placas como aquela também, só que em árabe...
Ao ler “Por
quem os sinos dobram” percebo, sem qualquer simbologia, que há heróis e vilões
dos dois lados de qualquer guerra. Por que não podemos aceitar que é muito
melhor viver em um mundo em que todos somos iguais, ao invés de estabelecermos “diferenças”
bélicas? Fico, assim, com as palavras do poeta John Donne, cujo verso
inspirou o título da obra-prima de Hemingway:
“A morte de cada homem diminui-me, porque sou parte da
humanidade. Portanto, nunca procure saber por quem os sinos dobram; eles dobram
por ti”.
Antes de
partir de Oak Park, uma fina chuva começou a cair. Vi uma mulher segurando a mão de um garoto, ambos
protegidos por um guarda-chuva. Enquanto eles se distanciavam, fiquei
imaginando em que momento da vida largamos as mãos de nossas mães e corremos
para longe de seu imenso guarda-chuva protetor, para nos encharcarmos nas frias
lágrimas de alguma guerra...
Próximo capítulo no dia 22/06: As aventuras de Huckleberry
Finn – Mark Twain.
quarta-feira, 25 de maio de 2016
O uivo - Allen Ginsberg
Era apenas uma carona, mas o destino não era qualquer um: São
Francisco. Renate ergueu a mão em despedida, o filho partiu, carregando um recém-estranho.
A estrada era uma longa noite em que uma mãe acordaria no dia seguinte para
seguir o rastro de Jack London e em que uma filha (irmã do homem ao volante
naquele carro) se voluntariava no Afeganistão em busca de algum mundo ideal –
que inexiste?
Fred
mantinha os olhos na estrada, falando amenidades. Cruzamos a ponte dos suicidas
e adentramos pelos bairros em que mendigos só encontravam muros. Mas, ainda
assim, Fred sorria. Em um breve lampejo, enquanto o carro cruzava a Columbus
Avenue, Fred anunciou:
— Lá
está a City Lights.
Tremi ao
ouvir esse nome. Lá estava a lendária livraria e editora independente de
Ferlinghetti, que publicou “O Uivo” de Allen Ginsberg, dando voz às ruas até
então mudas. E o longo uivo começa assim:
“Eu vi os expoentes
da minha geração, destruídos pela
loucura, morrendo de
fome, histéricos, nus,
arrastando-se pelas
ruas do bairro negro de madrugada
em busca de uma dose
violenta de qualquer coisa,
hipsters com cabeça
de anjo ansiando pelo antigo
contato celestial com
o dínamo estrelado da
maquinaria da noite...”
Um uivo
que foi ouvido em todos os becos do mundo! E tão extasiado fiquei, que me
esqueci de pedir para descer ali (não havia tempo de qualquer forma). Mas,
antes, com as mãos trêmulas, ainda tirei uma foto, que pode muito bem refletir
o que senti ao passar diante da City Lights. Apenas um eco de imagem, um
sopro...
Que
poética maneira de conhecer a City Lights, assim como um cometa efêmero,
passando de carona, sem tempo nem menos para um rápido folhear entre os volumes
mortos da livraria dos beats. Rápido, rápido! Não pare! Assim deveria ser. E
assim foi.
Este é
um breve relato, mas é porque eu sigo o uivo. Acabo de voltar de Ipatinga e BH,
onde conheci poetas loucos (a loucura dos versos que curam a sanidade) e, daqui
a alguns instantes, pegarei novamente minha bagagem de livros, para semear as
pequenas poesias do dia a dia em uma ilha... sem Internet, sem sinal de
celular... Ah! Desculpem-me pela pressa, mas devo pegar a estrada, rápido,
rápido... As luzes da cidade irão se apagar, rumo ao mar.
Eu ia
acabar este relato aqui, mas não posso. Pois devo dizer o que mais aconteceu
naquela noite, depois que o filho de Bialy me deixar na rodoviária de São
Francisco. O meu ônibus prestes a zarpar rumo ao leste, onde o sol nasce. Mas
antes, ainda vi a bondosa Renate, um tanto ofegante e trôpega, trazendo debaixo
do braço o meu guia. O guia que eu havia esquecido em sua casa. O meu guia
pessoal, com os mapas, as anotações, os endereços da América que eu mesmo compilei
para a minha peregrinação.
— Achei
que fosse importante, por isso eu vim – ela sorri, recobrando o fôlego.
Sim, era
importante. Não as anotações e os mapas do meu guia, mas a presença da mãe que
dirige centenas de quilômetros apenas para garantir que as ovelhas desgarradas
ainda tenham algum rumo na vida. Há destruição e desgraça, há escuridão e
solidão, mas há ainda também a família de Renate Bialy, a mão estendida, a
graça, a luz... Não importa o quanto o mundo anda surdo nestes tempos escuros.
Ainda assim é preciso uivar...
Muito
obrigado, Renate Bialy!
Próximo capítulo, dia 08/06: Por quem os sinos dobram –
Ernest Hemingway.
Desculpem-me avisar assim, as postagens a partir de agora serão quinzenais,
para desacelerar um pouco a peregrinação. Obrigado!
quarta-feira, 11 de maio de 2016
O chamado da floresta - Jack London
Embarquei
em um ônibus com 4500 quilômetros de asfalto deitados à frente. Era o mítico e
vasto Oeste me chamando de tal forma que seria impossível ignorar o chamado.
Por que eu estava disposto a cruzar o país inteiro em busca de apenas um
escritor? Porque era por Jack London.
Nesta
longa (Maryland) e aparentemente interminável jornada (Pensilvânia),
sentaram-se ao meu lado não apenas os personagens da América (Ohio), mas a
realidade de um mundo tão vasto quanto a estrada que percorríamos (Indiana). E
assim, me acompanharam nesta mágica viagem: um africano (Kansas) que
afirmava ser rei (confessou-me mais tarde que era apenas descendente de um rei
que perdeu seu reino em algum lugar da África – não especificou o país, pois
não reconhecia suas fronteiras), (Colorado) um refugiado paquistanês que não
falava a língua do país (Wyoming) que o acolheu, mas que com o sorriso sabia
agradecer por isso... e tantos outros que provavam que o mundo (Utah) se
encontrava na estrada. (Nevada) Três dias depois, em uma silenciosa madrugada,
o ônibus finalmente me despejou do outro lado do continente (CALIFÓRNIA), na
cidade banhada pelo Pacífico: São Francisco!
Não
desperdicei meu tempo e tomei um ônibus urbano para a ponte Golden Gate. Queria
atravessá-la a pé. O sol ainda não havia nascido e mesmo que estivesse claro,
eu não conseguiria ver a ponte vermelha, pois toda a baía estava coberta pela
neblina. Aos poucos comecei a enxergar o alto das torres da ponte, que pareciam
mastros de um navio fantasma. Logo no início da travessia, encontrei o primeiro
sinal de que aquele era o lugar em que mais suicídios eram cometidos no mundo.
Um telefone acompanhava a placa: “Há esperança / Faça a ligação”. Ao chegar no
que acreditei ser a metade do caminho, parei para contemplar o amanhecer.
Imaginei que se os suicidas tivessem esperado por um amanhecer como aquele, não
teriam saltado para o anoitecimento eterno.
Meus olhos se encheram de tal forma que era como se eu testemunhasse o
parto do mundo. No horizonte, os prédios pareciam flutuar sobre um mar
vermelho, enquanto a humanidade despertava para mais um dia.
Jack
London escreveu “Não desperdiçarei meus dias tentando prolongá-los. Usarei meu
tempo”. Era isso o que eu tentava fazer ao atravessar a Golden Gate. Meu dia
não seria longo, mas eu estava decidido a usar o meu tempo para vivê-lo
dignamente. Ao final da ponte, tentei obter informações com um homem que havia
parado para admirar a manhã na baía de São Francisco, em uma van adaptada como
lar. Ele estava indo para a direção oposta à minha, cruzaria a ponte para a
cidade, mas ele apenas disse:
— Entre
que eu te levo até o ponto de ônibus. Eu te levaria
até Santa Rosa, mas tenho horário para chegar à faculdade. Estou tentando ser
uma pessoa normal, seguir o relógio, sabe como é, não?
Em pouco tempo, eu estava em um ponto localizado em um rua
bonita. Agradeci e ele partiu em sua van, sem sequer trocarmos nomes. Talvez
isso não fosse preciso, pois provavelmente nunca mais nos veremos. Mas sendo
este o caso, não seria legal deduzir que este foi um gesto de humanidade?
Afinal, aquele homem doou o que tinha de mais precioso. Doou um pouco do seu
tempo a um desconhecido, com quem nunca mais dividiria sequer segundos neste
mundo... Provavelmente, claro... Nunca se sabe. Mas isso realmente me deixou
emocionado. Quando o vi partir, era como se um amigo tivesse me dado uma carona
até o início de minha própria caminhada pela vida. Talvez eu estivesse poético
demais naquela manhã, provavelmente ainda sob o efeito daquele amanhecer na
ponte dos suicidas.
Depois
de algum tempo, eu já estava caminhando pelo Vale de Sonoma, até avistar a
entrada do Jack London State Historic Park. Foi uma longa jornada até ali, e
não me refiro aos mais de 4500
quilômetros percorridos, nem aos três dias de viagem. O tempo que me levou até
aquele parque era muito maior, desde a primeira vez em que eu conheci o cão
Buck e sua saga. Um cão arrancado do conforto familiar em uma casa californiana
para ser jogado no selvagem Alasca e a sua “lei do porrete” durante a corrida
do ouro e da ganância humana, uma história de sobrevivência que leva Buck a
ouvir o “chamado da floresta”, que é atendido entre os uivos dos lobos
selvagens! Era esse uivo que eu queria ouvir no vale onde Jack London ancorou
sua vida após percorrer o mundo atrás de aventuras e histórias para contar.
Jack
London (pseudônimo de John Griffith Chaney) foi um dos mais populares
escritores norte-americanos na virada entre os séculos 19 e 20. Com o sucesso,
conseguiu comprar aquela vasta terra
onde pretendia construir a sua casa dos sonhos. Até mesmo os viajantes querem
um lar... Mas nem sempre foi assim. Antes de se tornar um escritor de sucesso
teve que trabalhar muito como operário, catador de ostras, marinheiro,
garimpeiro... Também experimentou o
“trabalho” de vagabundo, saltando em trens de carga e conhecendo a escória das
ruas, assim como também viajou pelo mundo, desde as quentes ilhas do Pacífico
Sul até o gelado coração do Alasca. Mas toda essa experiência serviu como material
para seus escritos. E foi a sua escrita que conseguiu dar lhe um chão que
poderia, enfim, chamar de seu.
Visitei
primeiro a “casa das paredes felizes”, como Charmian, esposa de Jack, a
chamava. Jack também tinha uma companheira de viagens e ali estavam as memórias
de suas aventuras conjuntas. Mas, ainda assim, aquela casa parecia domesticada
demais para ser o lar do autor de “O chamado da floresta”. Por isso, não me
detive muito por ali, preferindo prosseguir até o seu túmulo que, como Jack
pediu, fica debaixo de uma pedra... na floresta. A natureza me acompanhou até
lá.
![]() |
As cinzas de Jack London foram depositadas debaixo desta pedra. |
Após
contemplar uma pedra no meio da mata, prossegui a trilha em busca das pedras da
“Casa do Lobo”. Esta sim, seria a casa
dos sonhos de Jack. Quando finalmente avistei as maciças paredes de pedra,
compreendi porque aquela era a casa dos sonhos dele. Mas nada na história de
Jack poderia ser tão simples assim, como construir uma casa e se mudar para o
seu interior...
Quando a
mansão estava praticamente pronta, a natureza parecia querer enviar mais uma
mensagem para Jack London. O fogo tomou conta da construção, destruindo a casa,
que hoje apenas ostenta seu esqueleto de pedra. O lobo não deveria se acomodar
em sua toca, mas continuar percorrendo as trilhas selvagens, sob o luar. E enquanto
eu caminhava pelas ruínas, senti o ridículo impulso de uivar para a natureza.
Claro que não fiz isso, porque eu tinha consciência de que, mesmo estando na
estrada há dias, eu ainda era um viajante domesticado, com um longo caminho
para poder me juntar à matilha daqueles que conseguem sobreviver a qualquer
golpe nesta vida, apenas para viver em liberdade. Sim, eu me sentia livre
naquelas ruínas, cercado pela floresta, mas aquela era apenas uma liberdade
provisória. Logo eu teria que me preocupar com o tempo. E, sinceramente, foi de
fato bem rápido que isso aconteceu. Se eu não voltasse imediatamente, perderia
o último ônibus de volta à civilização...
Apertei
o meu passo e, ao chegar em um caminho mais largo, uma simpática senhora de
cabelos brancos como o inverno no Alasca parou o seu carrinho elétrico,
oferecendo-me uma carona. Era Renate Bialy, uma voluntária que levava os
visitantes aos pontos de interesse do parque. Conversamos brevemente e ela me
perguntou se eu tinha visitado tais e tais pontos.
— Nem
todos... Tenho que ir embora para pegar o último ônibus.
Conversamos
um pouco e ela me disse que seria uma pena se eu não conhecesse o chalé onde
Jack London escreveu suas últimas histórias. Também mencionou o “Palácio dos
Porcos” e outros locais pitorescos. Enfim, decidi explorar mais o parque e, se
fosse o caso, dormir no mato mesmo por aquela noite. Afinal, que mal isso
faria?
“Usarei
o meu tempo”, e fiquei.
Reencontrei
Bialy ao final do dia, com um convite para jantar em sua casa. Ela preparou uma
comida tão estupenda que eu sequer poderia descrever o que era. Jantamos eu,
ela, sua amiga Olga e seu filho Fred. Uma coisa que percebi enquanto eu estava
lá é que não era ela que habitava a casa, mas era mais como se o lar habitasse
o coração dela. Afinal, era ali que ela acolhia, de fato, a todos.
Enfim,
eu poderia ter ficado por ali, mas tinha que partir a tempo de pegar o ônibus
de volta ao leste, pois o meu tempo na América estava se esgotando. Tampouco eu
poderia desperdiçar a carona que Fred me oferecia, de volta a São Francisco,
onde ele morava.
Tempo...
Foi isso o que ganhei naquele único dia em que tantas pessoas me ofereceram
muito mais do que seus minutos ou horas... o que elas me deram foi simplesmente
um tempo livre, e não digo isso como sinônimo de tempo ocioso, mas sim como um
tempo realmente livre. Um tempo de liberdade.
E
enquanto o carro de Fred me levava de volta a São Francisco, eu pude
contemplar a lua cheia, sentindo o meu coração mais livre do que nunca, como um
velho lobo, que uiva atendendo ao chamado da floresta que ainda resiste dentro
de cada um de nós.
Próximo capítulo: O uivo – Allen Ginsberg
quarta-feira, 4 de maio de 2016
O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald
Eu poderia ter ido a muitos lugares em Baltimore, para seguir os passos de F. Scott Fitzgerald, o autor de “O Grande Gatsby”. Mas escolhi um lugar onde suas memórias ainda poderiam estar hospedadas: o Hotel Stafford.
No
passado, o hotel servia a elite de Baltimore e ilustres visitantes, como
estrelas de cinema (hotel favorito de Katherine Hepburn) e famosos escritores,
sendo o último endereço de F. Scott Fitzgerald em Baltimore, antes de sua mudança
para Hollywood.
Diante
do elegante prédio, imaginei as festas que um dia seus salões testemunharam.
Talvez seriam festas que o próprio Gatsby daria, se o personagem vivesse em
Baltimore e não em Nova Iorque. De qualquer forma, o Stafford poderia representar
o Sonho Americano, criticado no grande romance de Fitzgerald. Na virada do
século 21, o Stafford Hotel testemunhou a própria decadência, tornando-se um
ponto de drogas e prostituição...
Em um
papel timbrado do Hotel Stafford, F. Scott Fitzgerald escreveu:
"Eu
amo Baltimore mais do que eu podia imaginar —
é tão rica em memórias — é bom olhar a rua e ver a estátua do meu
tio-avô e saber que Poe está enterrado aqui e que muitos antepassados andaram
na cidade velha... Eu pertenço aqui, onde tudo é civilizado e alegre... E eu
não me importaria se em poucos anos, Zelda e eu pudéssemos nos aconchegar
juntos sob uma pedra em algum velho cemitério aqui. Isso é realmente um
pensamento feliz...”
Quando o
escritor chegou a Baltimore, nos primeiros anos da Grande Depressão, desejava
retomar a vida com um novo livro, ao mesmo tempo em que tinha a esperança de
ver sua musa, Zelda, curada de sua esquizofrenia. Mas nada disso aconteceu,
Fitzgerald tinha seus próprios problemas com o alcoolismo... A festa parecia ter
acabado. O que poderia se dizer de um personagem, Gatsby, que viveu com fausto
os loucos anos do jazz acabando em seu funeral com apenas três pessoas? Durante
a vida, enquanto tudo era festa, os salões viviam lotados. Mas na morte...
Seria isso triste? O personagem Meyer Wolfsheim justifica sua ausência no
funeral:
“Vamos aprender a demonstrar nossa amizade a um homem enquanto ele está vivo, e não depois que morreu..."
A vida
acompanha um estranho ciclo. Assim como aquele prédio diante de mim, que experimentou
o luxo na época em que ainda era o imponente Hotel Stafford, decaiu para se
tornar um ponto de prostituição e drogas... e reergueu-se, tornando-se
propriedade da Universidade Johns Hopkins (lembram-se do Doutor Gregory
House?), que o converteu em residência estudantil. Acredito que jovens o
habitam, sem o luxo das antigas festas, mas com o peito cheio de esperança e
amizade. Assim espero... Enquanto me afastava do velho Stafford, até imaginei
ouvir alguns acordes de jazz...
Próximo capítulo: O chamado da floresta – Jack London.
quarta-feira, 27 de abril de 2016
O corvo - Edgar Allan Poe
Voltei para Nova Iorque, onde mais uma vez perambulei em busca de nada ou talvez de tudo. Antes do amanhecer, eu já estava em outro ônibus rumo a Baltimore. Ao meu lado sentou-se o C.E.O de uma companhia... de Poesia. Ele estava elegantemente vestido com terno e gravata, mas ainda assim com o olhar de quem se despe diante da Poesia. Tão pesadas estavam as minhas pálpebras naquela noite que adormeci ouvindo palavras que cada vez mais perdiam o sentido. Ao despertar e me deparar com o assento vazio, imaginei se realmente eu havia conversado sobre poesia com um homem de terno e boné, que falava sobre segredos árabes, sobre as noites da África e sobre viagens em ônibus de assentos negros e choros de bebês. Se eu não acordasse com o cartão de visita dele em meu bolso, talvez eu pensasse que tudo não havia passado de um sonho, que nada daquilo tinha realmente acontecido. A vida seria isso? Apenas um cartão de visita? Nunca mais o vi.
Saí do terminal e acabei ao lado do estádio do Baltimore Ravens (os Corvos de Baltimore). Em poucos passos já estava perdido. Pensei, será que se eu perguntar alguém saberia me indicar o caminho para a casa de Edgar Allan Poe? A primeira pessoa que parei disparou:
— Sim, eu sei onde fica. Mas corra, porque a casa dele vai fechar…
A modesta casa de Poe naquela cidade havia se tornado um pequeno museu, que por falta de recursos estava prestes a encerrar suas atividades. O que seria feito do seu acervo? Estaria tudo fadado a ser emparedado para sempre? Corri. Fui me perdendo e perguntando pelo caminho as indicações para a casa de Poe.
— Quem? – alguns indagavam.
A aparente sorte inicial não se repetiu, mas foi falha minha. Eu estava perguntando como se Poe ainda estivesse vivo. A senhora, o senhor… sabe onde fica a casa de Edgar Allan Poe? Só percebi isso quando uma grande mulher negra gritou para as pessoas ao redor:
— Vocês conhecem algum Edgar Poe que mora por aqui?
Quando eu ia esclarecer sobre a mortuária condição de Poe, ela insistiu, como em um leilão de almas:
— Alguém conhece Edgar Poe? Alguém?
E antes que eu pudesse dizer qualquer coisa ela lamentou:
— Como isso é triste. Eu moro nessa vizinhança há anos e não conheço esse Mr. Poe… Ninguém conhece. Isso é mesmo muito triste. Quando ele morrer, quem irá ao seu funeral?
E eu percebi que ela realmente se preocupava com isso. Ela se lamentava sem sequer saber que o funeral já havia ocorrido há mais de 150 anos. Achei o luto daquela senhora tão autêntico que sequer esclareci a condição do vizinho famoso. Despedi-me já preparado a perguntar não mais sobre Poe, mas sobre um pequeno museu por ali, que também estava sendo velado, envolto em um funeral que estava prestes a acontecer. O museu fechado, como o tampo de um caixão. Nunca mais?
Assim continuei por aquela modesta vizinhança, de pessoas simples e dignas, de casas parecidas de tijolos à vista, sem qualquer ostentação. E carregando comigo a imaginária lembrança de Poe em seus últimos dias, perambulando pelas ruas daquela cidade, em delírio, muito mais perdido do que eu estava naquela manhã... O pobre escritor murmurando coisas sobre a sua alma. E foi tentando ouvir esses sussurros que, em uma esquina qualquer, entre as casas geminadas todas semelhantes, encontrei o que buscava...
Até então, das casas de escritores que havia conseguido visitar até ali, aquela era a mais humilde de todas. Edgar Allan Poe foi o primeiro escritor norte-americano a tentar viver exclusivamente como... escritor. Todos os demais tinham outras profissões paralelas. Senti uma tremenda empatia por aquela casa, pois ela era a edificação de um sonho possível: viver da escrita. Uma construção humilde, porém, sólida. Sim, ela estava ali, mesmo que com a porta fechada. A quem caberia abrir as suas portas e janelas?
Sentei-me na soleira, relembrando as memoráveis histórias do detetive Dupin, arrepiado por histórias como "O Gato Preto”, "O Barril de Amontillado” e relembrando “A Queda da Casa de Usher”. Que perfeita vizinhança, que manhã silenciosa velando uma casa fechada com seus segredos... Mas o ponto alto de minha peregrinação à casa de Poe em Baltimore foi o grasnar... de um corvo!
Ah! Que poética experiência! Que perfeita forma de cumprir o meu intento, de tentar vislumbrar a alma deste grande escritor. E tal foi a impressão daquele grasnar e das asas negras alçando voo, contrastando com o azul do céu, que sequer cogitei procurar pelo túmulo de Poe naquela mesma cidade, para encerrar a minha peregrinação. Para o fim, bastava relembrar alguns versos de seu poema mais famoso, “O corvo”:
“Sorriu-me o triste pensamento;
Vou sentar-me defronte ao corvo magro e rudo;
E mergulhando no veludo
Da poltrona que eu mesmo ali trouxera
Achar procuro a lúgubre quimera,
A alma, o sentido, o pávido segredo
Daquelas sílabas fatais,
Entender o que quis dizer a ave do medo
Grasnando a frase: ‘Nunca mais’.”
Aquele museu estava de portas fechadas, um ninho sem corvo? Reabriria um dia ou nunca mais? Levantei-me da soleira e sem sequer tentar girar a maçaneta da porta daquela casa velada, fui embora tentando encontrar no céu o corvo que já havia partido antes de mim. E a única coisa que encontrei no ar foi a dúvida, sem qualquer vestígio de resposta:
“Nunca mais?”
Consegue encontrar o corvo? |
P.S.: Alguns anos depois de minha visita a Baltimore, o museu foi, felizmente, reaberto!
Próximo capítulo: O Grande Gatsby - F. Scott Fitzgerald
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