Embarquei
em um ônibus com 4500 quilômetros de asfalto deitados à frente. Era o mítico e
vasto Oeste me chamando de tal forma que seria impossível ignorar o chamado.
Por que eu estava disposto a cruzar o país inteiro em busca de apenas um
escritor? Porque era por
Jack London.
Nesta
longa (Maryland) e aparentemente interminável jornada (Pensilvânia),
sentaram-se ao meu lado não apenas os personagens da América (Ohio), mas a
realidade de um mundo tão vasto quanto a estrada que percorríamos (Indiana). E
assim, me acompanharam nesta mágica viagem: um africano (Kansas) que
afirmava ser rei (confessou-me mais tarde que era apenas descendente de um rei
que perdeu seu reino em algum lugar da África – não especificou o país, pois
não reconhecia suas fronteiras), (Colorado) um refugiado paquistanês que não
falava a língua do país (Wyoming) que o acolheu, mas que com o sorriso sabia
agradecer por isso... e tantos outros que provavam que o mundo (Utah) se
encontrava na estrada. (Nevada) Três dias depois, em uma silenciosa madrugada,
o ônibus finalmente me despejou do outro lado do continente (CALIFÓRNIA), na
cidade banhada pelo Pacífico: São Francisco!
Não
desperdicei meu tempo e tomei um ônibus urbano para a ponte Golden Gate. Queria
atravessá-la a pé. O sol ainda não havia nascido e mesmo que estivesse claro,
eu não conseguiria ver a ponte vermelha, pois toda a baía estava coberta pela
neblina. Aos poucos comecei a enxergar o alto das torres da ponte, que pareciam
mastros de um navio fantasma. Logo no início da travessia, encontrei o primeiro
sinal de que aquele era o lugar em que mais suicídios eram cometidos no mundo.
Um telefone acompanhava a placa: “Há esperança / Faça a ligação”. Ao chegar no
que acreditei ser a metade do caminho, parei para contemplar o amanhecer.
Imaginei que se os suicidas tivessem esperado por um amanhecer como aquele, não
teriam saltado para o anoitecimento eterno.
Meus olhos se encheram de tal forma que era como se eu testemunhasse o
parto do mundo. No horizonte, os prédios pareciam flutuar sobre um mar
vermelho, enquanto a humanidade despertava para mais um dia.

Jack
London escreveu “Não desperdiçarei meus dias tentando prolongá-los. Usarei meu
tempo”. Era isso o que eu tentava fazer ao atravessar a Golden Gate. Meu dia
não seria longo, mas eu estava decidido a usar o meu tempo para vivê-lo
dignamente. Ao final da ponte, tentei obter informações com um homem que havia
parado para admirar a manhã na baía de São Francisco, em uma van adaptada como
lar. Ele estava indo para a direção oposta à minha, cruzaria a ponte para a
cidade, mas ele apenas disse:
— Entre
que eu te levo até o ponto de ônibus. Eu te levaria
até Santa Rosa, mas tenho horário para chegar à faculdade. Estou tentando ser
uma pessoa normal, seguir o relógio, sabe como é, não?
Em pouco tempo, eu estava em um ponto localizado em um rua
bonita. Agradeci e ele partiu em sua van, sem sequer trocarmos nomes. Talvez
isso não fosse preciso, pois provavelmente nunca mais nos veremos. Mas sendo
este o caso, não seria legal deduzir que este foi um gesto de humanidade?
Afinal, aquele homem doou o que tinha de mais precioso. Doou um pouco do seu
tempo a um desconhecido, com quem nunca mais dividiria sequer segundos neste
mundo... Provavelmente, claro... Nunca se sabe. Mas isso realmente me deixou
emocionado. Quando o vi partir, era como se um amigo tivesse me dado uma carona
até o início de minha própria caminhada pela vida. Talvez eu estivesse poético
demais naquela manhã, provavelmente ainda sob o efeito daquele amanhecer na
ponte dos suicidas.
Depois
de algum tempo, eu já estava caminhando pelo Vale de Sonoma, até avistar a
entrada do
Jack London State Historic Park. Foi uma longa jornada até ali, e
não me refiro aos mais de 4500
quilômetros percorridos, nem aos três dias de viagem. O tempo que me levou até
aquele parque era muito maior, desde a primeira vez em que eu conheci o cão
Buck e sua saga. Um cão arrancado do conforto familiar em uma casa californiana
para ser jogado no selvagem Alasca e a sua “lei do porrete” durante a corrida
do ouro e da ganância humana, uma história de sobrevivência que leva Buck a
ouvir o “chamado da floresta”, que é atendido entre os uivos dos lobos
selvagens! Era esse uivo que eu queria ouvir no vale onde Jack London ancorou
sua vida após percorrer o mundo atrás de aventuras e histórias para contar.
Jack
London (pseudônimo de John Griffith Chaney) foi um dos mais populares
escritores norte-americanos na virada entre os séculos 19 e 20. Com o sucesso,
conseguiu comprar aquela vasta terra
onde pretendia construir a sua casa dos sonhos. Até mesmo os viajantes querem
um lar... Mas nem sempre foi assim. Antes de se tornar um escritor de sucesso
teve que trabalhar muito como operário, catador de ostras, marinheiro,
garimpeiro... Também experimentou o
“trabalho” de vagabundo, saltando em trens de carga e conhecendo a escória das
ruas, assim como também viajou pelo mundo, desde as quentes ilhas do Pacífico
Sul até o gelado coração do Alasca. Mas toda essa experiência serviu como material
para seus escritos. E foi a sua escrita que conseguiu dar lhe um chão que
poderia, enfim, chamar de seu.
Visitei
primeiro a “casa das paredes felizes”, como Charmian, esposa de Jack, a
chamava. Jack também tinha uma companheira de viagens e ali estavam as memórias
de suas aventuras conjuntas. Mas, ainda assim, aquela casa parecia domesticada
demais para ser o lar do autor de “O chamado da floresta”. Por isso, não me
detive muito por ali, preferindo prosseguir até o seu túmulo que, como Jack
pediu, fica debaixo de uma pedra... na floresta. A natureza me acompanhou até
lá.
 |
As cinzas de Jack London foram depositadas debaixo desta pedra. |
Após
contemplar uma pedra no meio da mata, prossegui a trilha em busca das pedras da
“Casa do Lobo”. Esta sim, seria a casa
dos sonhos de Jack. Quando finalmente avistei as maciças paredes de pedra,
compreendi porque aquela era a casa dos sonhos dele. Mas nada na história de
Jack poderia ser tão simples assim, como construir uma casa e se mudar para o
seu interior...
Quando a
mansão estava praticamente pronta, a natureza parecia querer enviar mais uma
mensagem para Jack London. O fogo tomou conta da construção, destruindo a casa,
que hoje apenas ostenta seu esqueleto de pedra. O lobo não deveria se acomodar
em sua toca, mas continuar percorrendo as trilhas selvagens, sob o luar. E enquanto
eu caminhava pelas ruínas, senti o ridículo impulso de uivar para a natureza.
Claro que não fiz isso, porque eu tinha consciência de que, mesmo estando na
estrada há dias, eu ainda era um viajante domesticado, com um longo caminho
para poder me juntar à matilha daqueles que conseguem sobreviver a qualquer
golpe nesta vida, apenas para viver em liberdade. Sim, eu me sentia livre
naquelas ruínas, cercado pela floresta, mas aquela era apenas uma liberdade
provisória. Logo eu teria que me preocupar com o tempo. E, sinceramente, foi de
fato bem rápido que isso aconteceu. Se eu não voltasse imediatamente, perderia
o último ônibus de volta à civilização...

Apertei
o meu passo e, ao chegar em um caminho mais largo, uma simpática senhora de
cabelos brancos como o inverno no Alasca parou o seu carrinho elétrico,
oferecendo-me uma carona. Era Renate Bialy, uma voluntária que levava os
visitantes aos pontos de interesse do parque. Conversamos brevemente e ela me
perguntou se eu tinha visitado tais e tais pontos.
— Nem
todos... Tenho que ir embora para pegar o último ônibus.
Conversamos
um pouco e ela me disse que seria uma pena se eu não conhecesse o chalé onde
Jack London escreveu suas últimas histórias. Também mencionou o “Palácio dos
Porcos” e outros locais pitorescos. Enfim, decidi explorar mais o parque e, se
fosse o caso, dormir no mato mesmo por aquela noite. Afinal, que mal isso
faria?
“Usarei
o meu tempo”, e fiquei.
Reencontrei
Bialy ao final do dia, com um convite para jantar em sua casa. Ela preparou uma
comida tão estupenda que eu sequer poderia descrever o que era. Jantamos eu,
ela, sua amiga Olga e seu filho Fred. Uma coisa que percebi enquanto eu estava
lá é que não era ela que habitava a casa, mas era mais como se o lar habitasse
o coração dela. Afinal, era ali que ela acolhia, de fato, a todos.
Enfim,
eu poderia ter ficado por ali, mas tinha que partir a tempo de pegar o ônibus
de volta ao leste, pois o meu tempo na América estava se esgotando. Tampouco eu
poderia desperdiçar a carona que Fred me oferecia, de volta a São Francisco,
onde ele morava.
Tempo...
Foi isso o que ganhei naquele único dia em que tantas pessoas me ofereceram
muito mais do que seus minutos ou horas... o que elas me deram foi simplesmente
um tempo livre, e não digo isso como sinônimo de tempo ocioso, mas sim como um
tempo realmente livre. Um tempo de liberdade.
E
enquanto o carro de Fred me levava de volta a São Francisco, eu pude
contemplar a lua cheia, sentindo o meu coração mais livre do que nunca, como um
velho lobo, que uiva atendendo ao chamado da floresta que ainda resiste dentro
de cada um de nós.
Próximo capítulo: O uivo – Allen Ginsberg