Nova York
Vi
o meu primeiro dia na América morrer na estrada. Meia-noite e os faróis dos
carros no sentido oposto tentavam me cegar. Mas eu ainda conseguia vislumbrar um
carro de luzes apagadas, carregando dois amigos, Dean Moriarty e Sal Paradise,
e sua trupe de loucos a caminho de Nova York após alguma jornada sem sentido, de
volta àquela cidade que os aprisionava apenas para soltá-los novamente, como
pássaros de asas feridas, rumo ao oeste.
Cheguei
à Port Authority de madrugada sem ter pregado o olho. A gigantesca rodoviária
parecia um velho que agonizava, mas que acreditava que nunca morreria. Pelos
corredores, tristes famílias de imigrantes (e quem não é imigrante nesta terra
ou em qualquer outra?) arrastavam suas malas de coisas inúteis, vez ou outra,
uma mãe de cem quilos deixava um filho esquelético sentado em cima delas,
apenas para que ninguém roubasse a sua miséria. E alguns mendigos cantavam algo
sobre a noite e de como a música não podia parar. Fui ao banheiro e alguém soltava
palavras de amor na privada, conversando ao celular com uma namorada que por um bom motivo
não estava ali. Intimidade versus privacidade.
Não
havia o que fazer a não ser esperar o meu ônibus para Boston. E eu não estava
ali, no coração da América, para esperar. Arrastei minha mochila para fora,
cuspido pelo velho terminal, e ganhei as ruas. Atraído pelas luzes e pela
multidão caminhei até a Times Square. Ali senti o peso da solidão, como se uma
imensa esfera caísse sobre mim, indicando que mais um ano havia se passado em vão.
Não queria ter que carregar isso pelo resto da viagem. De todas as coisas que
um homem pode carregar, a solidão com certeza é das mais pesadas. E não falo da
solidão dos viúvos e dos órfãos ou daqueles jovens que pensam que a dor da
perda do primeiro amor será a última, sem saber que a perda é algo que se
arrasta pelo resto da vida. Falo da solidão de estar triste consigo mesmo, de
pensar que não há motivo para estar ali ou em qualquer outro lugar, que não há
razão de existir. Não, eu não podia baixar a cabeça logo no início da minha
peregrinação. Levantei o olhar e encontrei os arcos dourados de uma lanchonete.
Foi então que eu percebi que aquilo que eu sentia era apenas fome. Comi e
voltei a sorrir. Como a felicidade pode ser tão simples assim? Apenas um estômago
cheio.

Antes
que a sede viesse me atormentar em algum ponto da América, comprei uma
garrafinha de água. Depois, bastava encher a garrafa em qualquer torneira e eu
nunca mais precisaria pagar por ela. E esse pensamento me animou ainda mais.
Perambulei
pelas ruas de Nova York, sabendo que ela nunca me aceitaria. Havia uma
infinidade de lugares que eu poderia ir, antecipando minha peregrinação a
outros escritores. Mas eu tinha que manter o foco em Jack Kerouac. Pela
madrugada, à medida em que as pessoas foram sumindo, me esquivei dos seres
fictícios de outros autores. Ainda não era hora de encontrar Holden Caulfield,
por exemplo. Sim, eu poderia ter ido ao The White Horse Tavern, na 567 Hudson
Street. Mas não queria gastar meu dinheiro com bebida em uma taverna, mesmo
sabendo que Jack se embriagou diversas vezes lá. Um peregrino enche a cara?
Talvez eu devesse ir a Saint Patrick’s Cathedral, na Quinta Avenida. Mas de
noite, eu veria os vitrais? As visões de Cody? Eu já havia rezado nessa
catedral em minha primeira vez em Nova York e nada aconteceu. Sei que é absurdo
esperar algo de uma conversa com Deus, principalmente quando o que você diz não
faz sentido algum. Então, eu simplesmente voltei para o terminal de ônibus e
caí fora daquela cidade, sem prece e sóbrio.
Boston - Lowell
Amanheci
em Boston. Eu tinha que tomar cuidado com aquela cidade também, porque por
aquelas ruas havia muitas pegadas de escritores. Se eu seguisse algum rastro
por ali, poderia ficar por dias naquela Festa do Chá, em um lugar onde as páginas
da literatura inglesa começaram a ser viradas, para que a literatura
norte-americana pudesse ser escrita.

Na
North Station embarquei em um trem para Lowell. Ao sair da pequena estação,
olhei para ambos os lados. Para um lado, o túmulo de Jack. Para o outro, a casa
onde ele nasceu. Será que quando Jean-Louis Lebris de Kerouac nasceu naquela
pequena cidade de Lowell, Massachusetts, no dia 12 de março de 1922, as
estradas já sabiam que ele as conquistaria? Quem era aquele bebê, filho de canadenses
de uma cidade de nome tão poético quanto Saint-Hubert-de-Rivière-du-Loup? Não,
ele ainda não era Jack. Muito mais do que apenas nascer, Jack tinha consciência
da morte de uma forma tão intensa, que ele sabia que entre o nascimento e a
morte deveria haver algo, não apenas um espaço vazio, um vácuo, um sopro. Com o
ranger do trem que partia às costas, ouvi a voz de Jack arranhando meus
ouvidos: “I am writing this book because we´re all going to die”. “Estou
escrevendo este livro porque todos nós iremos morrer – Na solidão da minha
própria vida, meu pai morto, meu irmão morto...”. Não havia dúvida. Para
visitar Jack era preciso inverter a mão da estrada da vida. Primeiro a morte,
depois o resto. E que resto!
Passei
por baixo da enferrujada ponte férrea, e uma placa manchada suspirava: “Welcome
do Prince Spaghettiville”. Aqueles eram os domínios de uma das maiores fábricas
de massa do país. Mas o convite era eco do passado. A refeição já havia sido
servida e não havia mais nada na mesa. Em outra placa, um aviso de que a
polícia estava de olho. E no número 105 pixado com spray branco um papel colado
alertava: “Área contaminada”. Logo avistei ao meu lado o cemitério de St.
Patrick e sua placa que indicava que aquele cemitério havia nascido em 1832.
Pela grade vi uma pequena lápide no chão que indicava o túmulo de um tal de J.
F. Kennedy. Apenas isso, um nome. Não dizia “Presidente dos Estados Unidos”,
nem “Pai amoroso” ou qualquer outra coisa. Apenas uma lápide de pedra com duas iniciais e um sobrenome. Isso porque o Kennedy famoso está enterrado em Arlington,
ao lado de uma “chama eterna”. Mas, no final, o que significa a morte, senão a
igualdade eterna? Aquele JFK e o outro JFK, que diferença fazia? Adiante havia
um túmulo de Stephen H. King. Apenas uma única letra muda tudo? Se ao invés de
um H, tivéssemos um E? Por que encontrar o túmulo de Jack Kerouac era
importante? Não era. E por isso mesmo eu queria ir lá. Porque as coisas
aparentemente importantes nesta vida, no final, não valem nada mais do que
letras em um túmulo. Jack não havia cruzado a América porque isso era importante.
Apenas fez isso porque quis.
Ao
lado do St. Patrick estava o cemitério Edson. Espalhafatosos gansos pastavam
por entre as lápides, defecando sobre os sóbrios túmulos. Ao longe, uma garrafa
brilhava. Segui o brilho e lá estava a palavra que eu procurava: Kerouac. Havia
um bilhete de agradecimento, junto com um cartão do “Six Ft. Swells Press –
After hours poetry” debaixo da garrafa, que àquela altura já estava vazia. Aquela
garrafa não deixava de ser uma piada, considerando-se que Kerouac morreu de
cirrose hepática aos 47 anos. Sentei-me ao lado de Jack, sentindo-me um idiota
por ter ido até ali, assim como era idiota a ideia de deixar um bilhete para um
morto ou promover um porre em sua homenagem. Mas, que diabos. Eu já estava lá
mesmo. Não, não ia tomar um porre, só deixaria um bilhete: Thanks, Jack. I´m on
the road. Senti que aquelas palavras eram ainda mais estúpidas, diante de tudo
o que Kerouac havia me dado em um momento da minha vida em que eu mesmo
abandonei tudo pra pegar a estrada. Mas, foi esse o meu único gesto de
agradecimento. Não houve prece.

—
Tendo uma conversinha com o velho Jack?
Um
velho parou na sombra de uma árvore próxima, talvez acostumado a ver aquela
cena: um cara crescido com cara de bobo sentado ao lado de um túmulo.
—
Eu não saberia o que dizer a ele – respondi.
—
Então, não diga nada. Só escute.
Por
mais estúpida que fosse a pergunta, eu tive que confirmar:
—
Quem?
O
velho sorriu e foi embora. E eu devo confessar que tentei escutar alguma coisa
além daquele vento que assobiava no gargalo da garrafa. MAR. 12, 1922. Olhei
para a outra ponta: OCT. 21, 1969. Logo
abaixo estava escrito: “Ele honrou a vida”. Era isso o que eu precisava ouvir.
Era hora de caminhar e ver a casa de Ti Jean, como estava escrito acima do nome
de Kerouac. Nada de Jack em seu túmulo, apenas um homem de sobrenome Kerouac
casado com Stella... e o pequeno Ti
Jean, ele próprio quando criança, porque um homem de verdade quando morre leva
consigo os sonhos de infância.
Caminhei
de volta, no sentido que me levaria à casa onde Ti Jean havia nascido, na
Lupine Road, número 9. As ruas de Lowell tentavam falar comigo, mas eu ainda
não conseguia escutar o que elas queriam me dizer. Apenas segui em direção ao
Rio Merrimack. E que visão eu tive das águas fluindo debaixo da ponte de metal
avermelhado. O que teria sentido o menino Jean diante daquele poderoso rio? O
mesmo rio que trazia velhas histórias e que havia destruído a loja do pai em
uma inundação.
Do
outro lado do rio, as ruas se acalmaram sob o sutil véu do silêncio.
Lá
estava a casa, onde Leo e Gabrielle e seus dois primeiros filhos, Gerard and
Caroline, moravam quando o pequeno Jean nasceu ali às cinco horas da tarde de
um domingo. Entre dois sorridentes bonecos de pano havia uma discreta
placa que indicava: Jack Kerouac Birthplace. Vasos de flores a a bandeira
americana tremulando...

Naquele
quarteirão, a família ainda morou na Rua Burnaby 35, e depois na casa 34 da rua
Beaulieu. Desde criança o pequeno Keroauc nunca morou mais do que quatro anos
na mesma casa, antecipando a sua vida errante quando adulto. Eu poderia dar
alguns poucos passos até a segunda casa de Jack e depois mais outros tantos,
todos do mesmo lado do rio, tudo tão próximo, assim como a escola na qual ele e
seu irmão estudaram. O irmão quase nunca ia à escola. Doente, morreu aos nove
anos. E assim Jack escreveu em seu livro “Visões de Gerard” que “ as freiras da
St. Louis de France Parochial School estavam ao lado da cama prestando atenção
às últimas palavras dele porque tinham ouvido as impressionantes revelações
celestiais que ele tinha feito”. Eu poderia ter ido até o local do funeral na
igreja ali perto, décadas depois. Mas para quê? O que eu queria ouvir daquelas
ruas, que vivenciaram a vidinha de dois pequenos irmãos era apenas aquela conversa
das visões de Gerard:
“O
céu é todo branco”.
“Os
anjos são como cordeiros, e as crianças e os pais ficam juntos para sempre”
dizia ele.
E
eu: “Sont-ils content? Eles são felizes?”
“Não
poderiam ser outra coisa senão felizes”.
Era
por aquela conversa que eu estava sentado na sarjeta diante de uma casa de
vasos floridos, em que o pequeno Ti Jean nasceu para viver apenas quatro de
seus anos loucos com o santo Gerard, cuja lembrança mais real foi um tapa que
ele deu em seu rostinho de inocência. Um tapa que todos nós deveriamos levar,
pois esse é o verdadeiro nascimento, quando finalmente tomamos consciência de
que a dor existe e que a morte pode levar até os anjos.
E
são felizes? Era essa a questão deste lado do rio Merrimack. Não arredei pé
dali, do lugar onde Jack nasceu, pois das outras casas eu não quis ouvir mais
nada. Não quis visitar a “Sad Beaulieu”, onde Gerard morreu. E são felizes? A
única questão que importa deste lado do rio...
***
Minha
peregrinação por Jack não havia se encerrado ali em Lowell. Por toda a América
eu veria os seus passos, sua sombra pedindo carona no esgueirar de uma tarde
que morre no oeste. Mas havia outros a quem eu precisava visitar. Assim, no
meio da ponte sobre o Rio Merrimack, joguei o olhar para o longo curso rio
acima. Por aquele rio, Henry David Thoreau viajou com seu irmão John, que
morreu de tétano... Thoreau escreveu um livro sobre essa jornada, “Uma semana
nos rios Concord e Merrimack”, talvez como um tributo ao seu irmão. A vida
parece uma eterna busca em memória de algum irmão que perdemos ao longo do
caminho. Pensei em meu irmão Felipe. E segui para Concord.
Próximo capítulo no dia
16/03/2016: Walden – inspirado pelo livro de David Henry Thoreau...