Por toda
Concord senti um ar diferente, como se cada folha morta fosse apenas a página de
uma antiga história retornando ao solo, nutrindo novos enredos que vicejavam em
cada folha de árvore ao meu redor. O que contaria se ainda estivesse em pé a
Árvore de Jethro, um antigo carvalho em cuja sombra aquela terra foi comprada
dos índios em 1635, para o nascimento da pequena Concord? Em seu lugar havia
outra árvore mais nova, indicada por uma placa que celebrava esse pacto que
estabeleceria, como disse Henry James: “O maior pequeno lugar da América”. Aquela localidade nunca passou dos vinte mil habitantes, mas através dos
séculos testemunhou fatos que marcaram toda a América, não apenas no campo
intelectual, com grandes escritores como Alcott, Hawthorne e os
transcendentalistas Emerson e Thoreau, mas também no campo da guerra pela
independência dos Estados Unidos contra os ingleses, relembrada a cada esquina.
E é com menção a outra guerra que Louisa May Alcott inicia sua obra-prima, com quatro “mulherzinhas”
lamentando um Natal sem presentes por conta da Guerra Civil Americana, na qual
o pai havia se voluntariado para combater pelo Norte contra os Confederados do
Sul. Mas não se trata de um livro de batalhas épicas, mas apenas daquelas travadas
no cotidiano de uma família americana do final do século 18 (o tema da feliz
família americana, ainda unida ao redor da mesa nos jantares, discutindo
amenidades). Louisa, que nasceu em 1832, trouxe muito de sua vida pessoal para
seus livros, sobretudo em Mulherzinhas, com os personagens absorvendo caraterísticas
de sua própria família. Assim viveram na vida real e na ficção as irmãs Anna
(Meg), May (Amy), Elizabeth (Beth) e Louisa sendo a personagem Jo, que tinha o
sonho de se tornar escritora (o que conseguiu com louvor na vida real). A forte
mãe Abigail inspirou a criação da mãe Marmee, e o pai Amos Bronson, Mr. March. Bronson
era professor e filósofo transcendentalista, amigo de Ralph Waldo Emerson,
tendo a família também convivido com Thoreau.
Aliás,
os Alcott eram uma família extraordinária. Bronson até ajudou a fundar a
comunidade agrária utópica de Fruitlands, baseada em princípios
transcendentalistas. Infelizmente (ou felizmente para a literatura), a
experiência não teve sucesso, os Alcott vieram morar em Concord, onde Louisa
May Alcott escreveria o seu clássico juvenil da literatura americana.
O que
permaneceu dessa viagem literária ao universo de Alcott foi aquela tarde em
Concord, diante de uma casa de madeira escurecida, com um pequeno caminho que
levava a uma porta verde. Não foi pela leitura do livro que eu compreendi o
motivo de “Mulherzinhas” ter se tornado uma obra tão importante. A resposta foi
dada por duas mulheres de meia-idade, que contemplei diante da casa dos Alcott.
Seriam irmãs? Ambas vislumbravam algo que parecia ir além de uma simples
residência, como se aquelas escuras paredes, ao invés de limitarem espaços,
expandissem e iluminassem lembranças de tal forma que todo o sentimento delas parecia
ter habitado aquele endereço, desde sempre.
Vi
claramente dois sorrisos desabrochando, como se as mulheres estivessem voltando
para casa depois de um longo, longo tempo. E acredito que tenha sido isso mesmo
o que eu testemunhei naquela tarde, na Orchard House. Aquelas mulheres, e posso
apenas supor, devem ter se encantado com a leitura de “Mulherzinhas” em uma
época de inocência e castelos no ar. Sendo assim, de alguma forma, moraram
naquela casa durante a infância ou juventude. E quando elas se lançaram um
olhar cúmplice de compreensão, de quem teve o prazer de conviver com as
pequenas aventuras cotidianas de Jo, Meg, Amy e Beth, eu compreendi a
importância daquela obra.
Eis a
beleza de um livro. Ele não precisa conter a grandiosa sabedoria filosófica dos
transcedentalistas ou o heroísmo dos que lutaram pela independência de um país
por aquelas terras. Ele só precisa conter algo que Louisa soube muito bem
colocar em seu livro, que, apesar de fictício em grande parte, tinha a essencial
verdade no diminutivo: as mulherzinhas, que sonharam, lutaram e conquistaram
pequenas coisas em seu dia a dia e que, no final, revelaram a possibilidade de
viver a mais simples e delicada das ambições humanas: a felicidade de uma vida
em família.
![]() |
Do túmulo de Jack e do local da cabana de Thoreau, recolhi folhas secas, mas da casa de Louisa, colhi uma flor. |
Nenhum comentário:
Postar um comentário