quarta-feira, 16 de março de 2016

Walden

Lowell-Boston-Nova Iorque

               Pretendia tomar um banho de gato na pia do banheiro da estação de Lowell, mas descobri que eu tinha esquecido a sacola com minhas cuecas e meias, no Brasil. A princípio ponderei que uma cueca e um par de meias seriam suficientes para duas semanas. Mas lembrei-me de que havia passado por um Outlet de Fábrica no caminho para a estação. Talvez meu bolso pudesse se dar ao luxo de comprar algumas peças baratas. Enquanto caminhava por pilhas de roupas defeituosas, achei graça em me lembrar que eu não fazia aquilo há anos: comprar roupas pra mim. Tudo o que eu vestia eu tinha ganhado, desde o tênis presenteado pela minha musa até o boné falsificado, presente de Mr. Tom, o tailandês, que o arrancou da própria cabeça e o pôs na minha antes de voltar para seus negócios na Tailândia. Fui embora de Lowell orgulhoso da minha cueca nova, paga com poesia.
               Voltei para Boston no anoitecer, de onde tomaria o trem para Concord. Sem ter onde dormir, tive a estranha ideia de ir para Nova Iorque e depois voltar para Boston, só para dormir no trajeto de ônibus. Afinal, os ônibus da Greyhound seriam meus pelo tempo que eu estivesse na América. Foi o que fiz. Além disso, onde mais eu poderia jantar dois pedaços de pizza e uma latinha de coca-cola por apenas dois dólares e setenta e cinco centavos, senão na espelunca dos indianos ao lado da rodoviária nova-iorquina? Um jogava queijo na massa e punha o círculo no forno, o outro tirava, cortava e jogava triângulos em pratos de papel que voavam nas mãos dos clientes, tudo em uma velocidade absurda. Deixei os irmãos indianos alimentando a noite e fui bater perna pela cidade que não dorme.


Concord

               O tempo na estrada é estranho, fechei os olhos em Nova Iorque e os abri em Boston, como se nunca tivesse saído de lá. Peguei o trem para Concord e não muito tempo depois eu já avistava Walden Pond, o lugar em que Thoreau construiu sua cabana para viver da natureza e para ela. Minha vontade era de saltar do trem em movimento e mergulhar nas águas daquela laguna histórica, mas me contive e vi as árvores se afastando até surgirem algumas ruas e o trem encostar na pequena estação de Concord. Teria que caminhar de volta, mas isso não foi difícil. Andei pela Thoreau Street, relembrando as palavras de Thoreau em seu livro “Andar a pé’:

               “Nossas expedições não passam de giros e regressamos à noitinha para o pé da velha lareira da qual nos apartáramos. Metade da jornada é para trilhar os caminhos já percorridos. Devíamos, andando menos, percorrer maior distância, e talvez, no espírito imortal da aventura, nunca mais regressarmos, preparados para devolver os nossos corações embalsamados, como relíquias aos nossos desolados domínios. Se estais pronto para deixar pai e mãe, irmão e irmã, esposa e filho, e amigos, e a nunca mais vê-los – se haveis saldado vossas dívidas, feito vosso testamento, deixado em ordem os negócios e se sois um homem livre, então estais pronto para uma caminhada”.

                E que caminhada seria! Mas eu ainda não era um homem tão livre assim. E, para ser sincero, não sei se gostaria dessa liberdade. Já havia tentado antes, deixar tudo para trás, mas o irresistível elo do amor familiar mudava sempre a direção da minha bússola, sempre me conduzindo de volta ao pé da velha lareira. Mas se o próprio Thoreau afirmou que só tinha conhecido em sua vida apenas uma ou duas pessoas que conheciam de fato a arte de andar a pé, eu poderia me contentar em ser destes andarilhos de temporada, que caem na estrada de vez em quando, como naquele instante, no caminho que levava o nome de Thoreau.



               Ao chegar na Reserva Walden Pond, entrei ávido para me embrenhar pelo bosque. Tive que parar um pouco para respirar. Não porque eu tivesse perdido o fôlego, mas era para me lembrar de que eu deveria estar consciente de cada passo, como se a caminhada fosse uma meditação em movimento. Foi assim que comecei a ouvir o som da floresta, os mínimos insetos amplificando a vida, o cheiro de natureza, os pelos da pele se eriçando com a brisa tépida, o abraço de cada elemento, como se eu pudesse me tornar parte de tudo aquilo que me cercava. Só então, finalmente, eu cheguei ao lar de Thoreau.



               Margeei lentamente a lagoa, como se cada passo fosse uma folha se desprendendo em um tranquilo outono. Não sei quanto tempo levou para que eu chegasse ao local onde Thoreau ergueu sua cabana, vivendo na mata por dois anos, dois meses e dois dias. Alguém poderia perguntar: por que alguém proclamaria simbolicamente a independência pessoal (no dia 4 de julho de 1845) se afastando da sociedade para viver sozinho no mato em uma cabana de seis metros quadrados? A resposta seria dada no livro “Walden”, que ele escreveu após essa experiência de “vida nos bosques”. E a resposta não poderia ser mais verdadeira:

            “Fui para a mata porque queria viver deliberadamente, enfrentar apenas os fatos essenciais da vida e ver se não poderia aprender o que ela tinha a ensinar, em vez de, vindo a morrer, descobrir que não tinha vivido”.


            Após a solitária caminhada, deitei-me sobre as folhas caídas sobre o solo da fundação da cabana de Thoreau. O estalar das árvores ao vento, a consciência das folhas... Senti-me tão em casa ali, que fui me banhar no lago. Nu, senti a água gelada aquecer a minha alma. Foi mais do que um banho, foi como um rito de batismo. Sentia-me tão livre, tão em comunhão com a natureza, um Adão moderno sem... Ouvi passos, mas não tive tempo de cobrir meus pudores. Uma mulher que caminhava por ali também testemunhou o meu rito de liberdade. Mas creio que ela não compreendeu assim, pois saiu em disparada, correndo pelas trilhas e sumindo no bosque.



            Restava me enxugar e encerrar o banho. Caminhando pela margem do lago, encontrei uma placa de “Proibido Nadar”. Talvez aquele fosse o motivo do espanto daquela senhora que me flagrou em delito. Não pude conter o meu sorriso. Afinal, eu estava seguindo os preceitos defendidos por Thoreau em seu livro “A Desobediência Civil”. Obra que ele escreveu após ter sido preso por se recusar a pagar impostos, porque estes financiavam a guerra contra o México. Um ensaio que inspirou Mahatma Gandhi em sua luta pela independência da Índia usando a “não violência”, além de Martin Luther King, Tolstói e até os hippies! Tudo isso tornou minha experiência nas águas de Walden ainda mais mística.
            Porém, logo em seguida encontrei outro aviso, um alerta:
            “Atenção visitantes do parque: Em meses recentes, nós temos recebido notícias de um indivíduo se expondo aos frequentadores... Se você encontrar essa pessoa, por favor, não o confronte... informe o incidente imediatamente, ligando para 911 ou o Departamento de Polícia de Concord...”




            Estranhamente, esse segundo aviso não me deixou muito a vontade. Achei por bem me embrenhar novamente pelo mato para fugir um pouco do contato com outras pessoas. Assim caminhei atravessando o campo onde Thoreau cultivou feijões para sua subsistência até sair por um acesso secundário, retornando à Rua Walden e, logo em seguida, a Rua Thoreau... E então, de volta à civilização, à sociedade... Só que me sentindo um pouco diferente, pois ainda mantinha um resquício de natureza entre os dentes, em um sorriso de quem viveu a liberdade de Walden, mesmo que por apenas algumas breves brisas de outono...
             

Próximo capítulo no dia 23/03/2016: Mulherzinhas – Louisa May Alcott.

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